O cangaço não era um mar de Flores
Entre os nomes que ressoam do cangaço, como ecos de tiros que não se apagam no clima seco e inclemente da caatinga, um deles se impõe pela conjunção de parentesco e violência, de intimidade e de mito: o de Virgínio, mais conhecido como Moderno, cunhado de Lampião, companheiro de armas, chefe de subgrupo, personagem ao mesmo tempo doméstico e terrível, ele nos aparece como uma dessas figuras que só o sertão profundo é capaz de produzir: um homem atravessado por lealdades de sangue e por violências codificadas, caminhando entre a feira, a alcova e o campo de batalha como quem atravessa compartimentos de uma mesma casa patriarcal.

Imagem feita com auxílio de IA
O que sabemos de Virgínio não nos chega claro e límpido. São fragmentos de certidões municipais, notas em jornais de circulação precária, lembranças de veteranos do cangaço e das volantes, depoimentos de viúvas e filhos, tudo recortado e colado pela pena dos memorialistas. Mas é exatamente desse mosaico colorido e multifacetado que se constrói a história e a atmosfera da maioria dos sertanejos envolvidos com o cangaço.
O nome de batismo aparece nos registros como Virgínio Fortunato da Silva Neto, filho de José Venâncio da Silva e de Júlia Amélia de Vasconcellos. A presença do “Neto” no final, grafada no cartório, ajuda a separar esse Virgínio de outros tantos homônimos que o sertão produzia. A certidão localizada em Florânia – outrora Vila de Flores – dá-lhe nascimento em 16 de janeiro de 1902, num desses anos em que o Brasil oficial, do coronelismo, da política do café-com-leite e dos governadores e da Belle Époque tropical, parecia contraditoriamente tão distante e tão próximo do Brasil real, sertanejo, submetido às crises das secas cíclicas, à escassez e às vinganças familiares.É documento primário, o mais sólido que se possui, ainda que por muito tempo houvesse quem sustentasse Alexandria como seu lugar de origem e 1903 como o ano provável de nascimento. A tradição oral, como se sabe, gosta de embaralhar datas e cenários. O peso de um registro civil, porém e a despeito ainda da necessidade de se averiguar com cuidado, é grande demais para ser ignorado. O documento foi encontrado por um “grupo de pesquisadores/estudiosos do cangaço, encabeçado pelo pesquisador Thiago de Góes” (https://cangacologia.blogspot.com/2019/06/retificando.html?spref=fb&fbclid=IwAR2Q7ChfSbqMs4uehhRcH2fr8uDJEbFOSo26W0QR5DYSXNUV2T0cfWehxwA) e me foi enviado (junto veio também a certidão de batismo) pelo amigo Josimar Tavares, incansável batalhador na trincheira de resgate da história do Seridó, especialmente de Florânia.
Esse nascimento em Florânia, num ambiente de pequenas propriedades e famílias de raízes profundas no solo do Seridó, situa Virgínio numa paisagem de beira de serra e de beira de feira. Desde cedo, como tantos sertanejos, teria transitado pelo comércio miúdo, o ambulante que leva miçangas, bugigangas, lenços coloridos, facas e alpercatas de couro, circulando entre vilas. É desse comércio que muitos futuros cangaceiros, entre os quais Lampião, nasceram; do exercício de andar, de mapear caminhos, de lidar com a negociação e com a esperteza. O passo do mascate ao cangaceiro pode parecer brusco, mas não é. O mascate aprende a viver na estrada, a avaliar homens, a guardar segredos, a escapar de perigos. Virgínio, antes de se tornar “Moderno”, já experimentara, provavelmente, essa vida anfíbia entre as feiras de vila e a caatinga.
Mas o que lhe abre de vez a porta para a história não é apenas seu ofício, mas seu casamento. Virgínio desposa Angélica Ferreira, irmã de Virgulino. Torna-se, portanto, cunhado de Lampião, e, no sertão de famílias entrelaçadas, esse laço não é coisa pequena. Mais que uma aliança doméstica, é um pacto de sangue, que lhe dá acesso ao círculo íntimo do chefe máximo do cangaço, do rei dos cangaceiros, do mais temido bandoleiro nordestino. A morte prematura de Angélica não dissolveu esse elo. Uma vez dentro do círculo, Virgínio permaneceu. A confiança de Virgulino nele era tamanha que Moderno chegou a comandar subgrupos de homens, com autonomia de movimentos em zonas de Alagoas, Sergipe e Bahia. O parentesco, aqui, funciona como funciona nas casas-grandes: o cunhado é incorporado como filho, como braço, como extensão da própria autoridade do patriarca.
No mundo sertanejo, no qual a honra se transmite por laços de família, a vida íntima e a vida guerreira se confundem. Assim é que, após a viuvez, Virgínio une-se a outra mulher: Durvalina Gomes de Sá, a célebre Durvinha. Com ela, teria dois filhos ainda em tempo de cangaço. E é aqui que o fio da narrativa se complica. Após a morte de Virgínio, Durvinha passa a viver com Moreno (Antônio Ignácio da Silva), que fora subordinado de Moderno e que, com sua morte, ascendeu em importância no bando. Décadas mais tarde, Moreno e Durvinha, já longe da vida de cangaceiros, emigraram para Minas Gerais, onde nunca falaram sobre o passado de tropelias. Mas na costura desses destinos percebe-se o entrelaçamento afetivo e militar que é tão característico do cangaço: casamentos, mortes, reacomodações sentimentais, tudo isso dentro de um mesmo círculo. É a vida de família que se prolonga no grupo armado, e vice-versa.
No entanto, o traço que colou na memória popular de Virgínio foi outro: a fama de “capador”. Dizem os relatos que Moderno, em certas ocasiões, tinha por ofício castrar inimigos vencidos, num gesto de humilhação exemplar. O fato aparece repetido em várias fontes secundárias, de modo a colar-se nele como se fosse sua principal característica: “Amigo próximo e ex-cunhado de Lampião, Virgínio era chefe de um sub-bando. Perverso, costumava castrar suas vítimas. Há registro de diversos casos em que ele mesmo castrava ou mandava alguém do bando executar o serviço” (https://tokdehistoria.com.br/tag/virginio-fortunato-da-silva/).
Apesar de abundarem registros e menções ao ofício de castrador oficial do banco de Lampião, é necessário cautela sobre o assunto. Não é que Virgínio fosse um sádico isolado. O cangaço, como lembra Frederico Pernambucano de Mello, em Guerreiros do Sol, continha em seu repertório a violência ritualizada – degolas, mutilações –, as quais serviam como mensagem pública de poder. Mas também é certo que a imaginação popular gosta de fixar tais práticas em um personagem específico, para dar à narrativa um rosto, um executor. Assim nasceu a figura do capador oficial de Lampião. Trata-se mais de economia narrativa do que de atributo exclusivo.
Chefe de subgrupo, Virgínio tinha sob sua liderança homens como Moreno. E é no destino desse subordinado que se vê como a vida do cangaço se refaz após as mortes. Quando Virgínio cai, como dito acima, Moreno não apenas assume a posição de destaque, como também se une a Durvinha, prolongando a linha biográfica e afetiva de seu antigo chefe. A história de Moderno se desdobra assim na história de outros, como se a morte não encerrasse, mas transmitisse.
O fim de Virgínio se dá em 1936, no município de Monteiro, na Paraíba. As fontes convergem em indicar o combate como circunstância e a bala como instrumento. Uma volante – tropas móveis que os governos estaduais organizavam para perseguir bandos de cangaceiros – surpreendeu o grupo em que ele se encontrava, provavelmente ao lado de Corisco. É nesse combate que Virgínio foi atingido na virilha, segundo algumas versões; na perna ou mesmo no peito, segundo outras. O detalhe anatômico pode variar, mas o resultado foi o mesmo: a morte rápida, sangrenta, que encerrou sua trajetória. O tenente Pompeu Aristides de Moura, figura lembrada por veteranos, é frequentemente citado como responsável pelo tiro fatal ou, ao menos, pela operação que o alcançou. O episódio data de outubro de 1936, sendo o dia 25 o mais mencionado em listagens regionais.
Há, claro, variantes mais novelescas. Alguns sugerem que Moreno, em meio ao tiroteio, teria aproveitado para alvejar o chefe, seja por ambição, seja por desejo de ficar com Durvinha. Mas tal hipótese carece de provas sólidas e deve ser vista mais como produto da imaginação sertaneja, que gosta de atribuir às paixões privadas o desfecho dos dramas públicos, do que como registro histórico. O que parece seguro é que Moderno morreu em Monteiro, em combate, no ano 1936, quando o cangaço já começava a curvar-se sob o peso das perseguições intensificadas e modernização acelerada.
O retrato de Virgínio, portanto, pode ser resumido em algumas linhas: homem nascido em Florânia em 1902, de nome completo Virgínio Fortunato da Silva Neto, cunhado de Lampião por casamento com Angélica Ferreira, depois companheiro de Durvinha, chefe de subgrupo, famoso pela alcunha de Capador, morto em Monteiro em 1936 por ferimento de bala em combate contra volantes. Mas resumir assim é reduzir demais. É preciso ver nele o tecido mais amplo de uma sociedade. Virgínio é ao mesmo tempo produto e ator de uma civilização sertaneja que se molda em torno da família patriarcal, da honra, da violência ritualizada e da mobilidade dos mascates. Sua vida atravessa todos os compartimentos de uma casa sertaneja: a feira onde negocia, a alcova onde ama, a sala onde se consolida o parentesco com Lampião, o quintal onde se afiavam facões, o terreiro onde se davam execuções.
Ao modo de Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, convém perceber a continuidade entre o privado e o público, entre o doméstico e o guerreiro. O cunhado de Lampião não era apenas uma peça militar; era também um genro, um marido, um pai. A dureza da sua fama como capador contrasta com a ternura de um homem que teve filhos com Durvinha e cuja descendência sobreviveria silenciosa em Minas Gerais, muito longe das caatingas onde ele se fez e se desfez. O mesmo sertão que conheceu sua violência também conheceu seu afeto. É nesse cruzamento que se encontra o caráter profundo do cangaço e dos cangaceiros, não apenas bandos armados, mas forma de vida, prolongamento extremo da família patriarcal, traduzida em armas e emboscadas.
Quando os memorialistas falam de Moderno, trazem sempre a marca da violência. Mas é preciso equilibrar essa ênfase com a visão mais ampla de sua inserção. Assim como outros cangaceiros, ele foi também fruto da ausência do Estado, da precariedade da justiça, da violência cotidiana dos coronéis, dos arranjos políticos entre estes e os oligarcas nordestinos e destes com oligarcas do centro-sul do Brasil. Sua adesão ao cangaço não foi apenas escolha individual, mas também resultado de um ambiente que fabricava homens armados como resposta à exclusão. É nessa chave que se deve ler a trajetória de Virgínio, menos como patologia isolada e mais como expressão social.
E quando lembramos que morreu em Monteiro, em 1936, atingido por balas que simbolizavam o avanço do Estado sobre o cangaço, vemos nele também a figura de uma transição. Sua morte marca a proximidade do fim de um ciclo. Dois anos depois, mais precisamente em julho de 1938, Lampião cairia em Angico, estado de Sergipe. O cunhado já se fora antes, como uma espécie de prenúncio. O corpo de Virgínio, tombado na beira da estrada paraibana, anuncia a decadência de um sistema que não sobreviveria à modernização dos meios repressivos e dos meios de transporte. Moderno, nascido Virgínio Fortunato da Silva Neto, ironicamente não sobreviveu à modernização que o Estado começava a impor ao sertão.
Assim se constrói o retrato de Virgínio. E nele se entrelaçam o documento civil de Florânia, de 16 de janeiro de 1902, os testemunhos orais recolhidos décadas depois, as crônicas policiais que noticiaram sua morte em Monteiro, os depoimentos da viúva e filhos, os livros de pesquisadores como Frederico Pernambucano de Mello (Guerreiros do Sol, Estrelas de Couro, Apagando o Lampião) e as compilações de biografias de cangaceiros que circulam em arquivos e blogs de estudiosos. Do confronto desses materiais emerge uma figura que não se reduz ao mito do capador nem ao estigma do bandido, mas que também não se dissolve na banalidade do sertanejo comum. É essa ambivalência que faz dele personagem digno de ensaio: um homem real, com certidão de nascimento, com esposa, cunhado, filhos e, ao mesmo tempo, mito, alcunha, fama, sangue, violência.
No sertão, tudo se mistura: o público e o privado, a honra e o comércio, a família e a guerra. Virgínio é expressão dessa mistura. E ao falar dele, falamos do cangaço inteiro, dessa civilização de couro e pólvora que foi ao mesmo tempo prolongamento e deformação da casa patriarcal nordestina. Sua morte em Monteiro, em 1936, é mais que um episódio militar, é símbolo e prenúncio do fim de um estilo de vida. E seu nascimento em Florânia, em 1902, é mais que uma data: é raiz de uma genealogia que se expandiria pelas veredas do sertão e pelos becos e ruelas da história.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1962.
Freitas, Nonato. Casal de ex-cangaceiros de Lampião conta como era a vida no cangaço. Disponível em: https://tokdehistoria.com.br/tag/virginio-fortunato-da-silva/. Acesso em: 27 ago. 2025.
Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Global, 2006.
Melo, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 6. ed. Recife: CEPE, 2018.
Melo, Frederico Pernambucano de. Estrelas de couro: a estética do cangaço. 2. ed. Recife: CEPE, 2019.
Melo, Frederico Pernambucano de. Apagando Lampião: vida e morte do rei do cangaço. 2. ed. São Paulo: Global, 2018.
Nogueira, Aderbal. Tenente Pompeu e a Morte de Virgínio. Disponível em: https://cariricangaco.blogspot.com/2011/05/tenente-pompeu-e-morte-de-virginio.html. Acesso em: 27 ago. 2025.
Santos, Antônio Amaury Corrêa. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço Editora, 1993.
Seminário Cariri Cangaço. Moreno e Durvinha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TDUQG08n7pg. Acesso em: 29 ago. 2025.
Lima, João de Sousa. Moreno e Durvinha: sangue, amor e fuga no cangaço. Paulo Afonso (BA): Editora Fonte Viva, 2007.
Lima, João de Sousa. Cangaceira Durvinha – um pouco de sua história. Blog de João de Sousa Lima. 2015. Disponível em: https://joaodesousalima.blogspot.com/2013/04/cangaceira-durvinha-um-pouco-de-sua.html. Acesso em: 30 ago. 2025.