A Mão do Ferreiro
Um erro grotesco da natureza, ele dizia. Condenava a Deus e a quem mais houvesse pelo caminho pela mão que faltava à filha do pastor. Poucos eram os dias em que o ferreiro a via passar e não lhe vinham estes pensamentos às ideias nem sempre claras que costumava ter. Perguntava-se por que faltava à filha do pastor a mão direita. Indignava-se quando se percebia próximo a uma resposta possível, sacudia a cabeça e voltava a martelar com força o aço ainda frio.
Quando a filha do pastor abriu a caixa pesada e adornada de fitas, não pode conter o espasmo de felicidade que lhe esbofeteou a cara diante da surpresa de ver ali uma mão muito bem trabalhada em metal, polida e quase humana, fossem os humanos mais minerais do que têm sido até hoje. Havia também um bilhete com uns versos descontextualizados de Ricardo Reis que diziam “Para ser grande, sê inteiro”.
Com a mão que lhe era possível, tocou a frieza da peça metálica, quase em um cumprimento. Olhou-a e deixou que se encostasse em seu rosto. Fez ar de riso pelo gelo de sua nova mão, de sua mão apartada. Amarrou-a ao toco de seu braço com as fitas de couro que cercavam-lhe o pulso, ajustou-a ao braço e sentiu pender para baixo o peso desumano de sua mão de aço, desproporcionalmente grande em relação a seu corpo, tendo sido feita com o molde da mão do próprio ferreiro.
Era um monstrengo atado ao coto de seu braço, quase impossível de ser carregado, uma anomalia, um corpo estagnado que não servia para quaisquer das funções de uma mão. Dificultava-lhe o andar, por não poder mexer bem os braços como quem anda o faz; nas danças, tinha sempre um braço pendido ao lado do corpo, inamovível e estranho, que não se punha à cintura de seus parceiros, descompassado e inarmônico, devido ao peso imenso que nele era. Contudo, ela o adorava e o ferreiro punha-se a contemplá-la de longe, como se toda a menina fosse uma criação sua.
Não se lembrava mais de como era faltar-se um pedaço. Aquele apêndice inumano, agigantado e brilhante, o bicho reluzente, fazia de seu corpo um inteiro completo, como se a natureza lhe tivesse sido generosa, até o dia em que lhe roubaram o artefato. Durante o sono, a mão pesava sobre seu corpo, dificultando-lhe a respiração. Por muitas vezes a tirava para que pudesse dormir e acordava leve dizendo “devo ter dormido por cima do braço: minha mão está tão dormente que não a sinto.”
Acordara sem a mão que lhe faltara por tantos anos. Não estava sobre o criado-mudo, nem na caixa ou mesmo no sofá. A mão lhe havia sido tirada novamente. Agora, não por Deus ou por quem quer puxe os cordões dos bonecos do mundo, mas por alguém que dela não precisava, que a venderia a um preço indecente, mais caro que a mão de madeira de um cristo ou a mão delicada de uma mãe. Viveria a filha do pastor incompleta, sem seu monstrengo, sem o peso de sua carga, pelo resto de seus dias.
Por Theo Alves