Um dia daqueles*
Preciso de abrigo, preciso ser ouvido, preciso de um bar. Muito chão ainda falta. De casa para o boteco de seu Mô é uma verdadeira jornada, mas a ocasião recomenda. Vou-me antes que se apercebam.
“Longe daqui as pessoas que não vestem a camisa da empresa!”
Essas palavras martelam sem parar à minha cabeça. E olha que já faz algumas horas que eu as ouvi. Aquele burocrata sem-vergonha, engravatado, cheirando a Charm, arremessou-me na sarjeta. Logo eu, com quase vinte anos de serviços prestados aos filhos das elites natalenses, a tentar colocar alguma coisa no quengo oco deles. Meus esforços não foram reconhecidos. É aqui que começa a história.
“Rapaz, você está esbaforido, hein? Aceita uma cerveja bem gelada?”
Seu Mô quer saber se macaco quer banana. Um tira-gosto também viria muito a calhar. Faz décadas que frequento este lugar, quase que semanalmente. É um prazer me sentir em casa.
“Como é que pode um negócio desses, meu Deus?! Um pai de família não pensa no futuro dos filhos e faz uma besteira como essa!”
Uma cerveja assim é obra provavelmente santa, perdoa os pecados. A paçoca é uma espécie de saguão do paraíso. Uma combinação perfeita. Não quero mais sair daqui – sempre que venho digo o mesmo. Antes de beber, hoje, eu pensava em Deus. Ei-Lo bem delineado, na minha cabeça, a me dizer que nada está perdido, que a vida ainda vale a pena.
“Você tem dois filhos pequenos para dar de comer, homem! Já parou para matutar sobre isso?”
Jairo, você também aqui. Que novidade! Um alcoólatra enxotado pelos amigos, parentes e por quem quer que seja. Sua vida resume-se à mesmice entorpecente das mesas de bar – que inveja! Mora sozinho, ganha o suficiente para beber. Aposentado por invalidez – dizem que alcoolismo é doença. Vive enfurnado no Nira Drink´s. Sua prostituta preferida é uma tal de Dolores, nominho que faz jus ao ofício. De vez em quando, ele perturba a proprietária do cabaré, dona Nira, com seus “chiliques de bêbado”, os quais são finalizados com lembranças ternas da mulher e dos três filhos, que não querem vê-lo nem pintado de ouro.
“Conheço você. Não precisa nem pedir. Vou tirar a última da pilha de garrafas, gelada como a Antártida.”
Cerca de duas décadas corrigindo, planejando, suando. Noites maldormidas, pestanas queimadas, olhos em dor. Abstinência sexual forçada, e mesmo assim vieram dois pentelhos. Às vezes se fica brocha em virtude do excesso de trabalho. Mas a esposa é indiferente. Ela já se habituou a migalhas, assim como o papai.
“Não precisava ter dito aquilo a ele, não precisava!”
Duas freguesas odiadas pela companheira de Mô. E com razão. O velho sempre foi presepeiro. Sabe-se que ele já comeu as duas, aliás, quem não as comeu! Rameiras, todas duas, e com letras garrafais. Zefinha e Adelita, de gerações diferentes, as mais desfrutáveis das redondezas. Se eu fosse psicanalista ou coisa do tipo, as denominaria ninfomaníacas. Trepam com tudo o que possui pênis.
O sol anuvia-se na ponta de trevas que principia a noite. Meia dúzia de cervejas. Ninguém veio à minha procura; sinto-me um Jairo em estágio embrionário. O pior é que dia de segunda-feira o bar fecha mais cedo. Seu Mô: um filho da égua garfieldiano.
Coitado do Jairo. Não adianta insistir. As duas menininhas só não dão para ele.
“Amanhã mesmo vou me refugiar na casa da tua mãe – e levarei os meninos! Ela vai ter que nos engolir até o senhor tratar de arrumar outro emprego!”
Transformo-me no orador mais eloquente do bar. Ninguém é capaz de competir comigo nas discussões intelectuais. Os bêbados fogem, iracundos, ao me ouvirem bramir: “Por que estamos neste planeta? De onde viemos? Para onde vamos? Afinal, qual é o sentido de estar vivo?” Eles dizem que minha conversa é de doido chato.
Seu Borges, antigo frequentador do boteco, é o único que se dispõe a ouvir meus desconchavos e lamúrias, e a me aconselhar também. Claro, ele é o único, além de Jairo (este dificilmente dialoga com alguém, a não ser com as quengas), que sempre está mais embriagado do que eu; creio que não se evade, como os outros, justamente porque já não consegue ficar de pé.
E as horas vão passando com a mesma velocidade com a qual eu consumo a cerveja: de maneira decerto instantânea. Seu Mô, Jairo, as duas mocinhas, seu Borges, todos esses desafortunados parecem fazer parte de um mesmo ser, monstruoso e ininteligível, que arrasta os meus pensamentos para o vórtice do olvido…
Os olhos encrespados se abrem com lassidão. A luz do sol assemelha-se a uma chuva de navalhas perfurando os já carcomidos globos oculares. Não há vivalma por perto. Muito chão ainda falta para eu descobrir, mais uma vez, que a rotina veio a óbito. Para falar a verdade, prefiro esperar o bar reabrir. As terças-feiras costumam ser menos enfadonhas: nisso eu concordo com o personagem de Jim Davis. É aqui que recomeça a história. E seja o que Deus planejar para mim hoje…
*Texto originalmente escrito no ano de 2007.
Obs.: O texto acima é do professor Cosme Marques, amigo e colega professor de História do IFRN.