A morte de uma Florânia que (quase) não existe mais

por Sérgio Trindade foi publicado em 04.mar.23

Duas pancadas no mesmo dia, com distância de minutos de uma para outra, a notícia do passamento de Chaguinha e de Maria José, ontem (03), representa também praticamente a morte de uma Florânia que (quase) não existe mais, a dos bares e serenatas.

Alcancei, adolescente, o final do período das serenatas.

Certa noite, dormíamos eu, Max e Junior de Tetê de tia Francisca na casa de tia Francisca e tia Inácia, quando fomos despertados, início da madrugada, com um grupo fazendo serenata na praça em frente à prefeitura municipal. Fomos os três – eu e Max com uma ressaca de matar, depois de um dia inteiro de farra por sítios e pelos bares da cidade – conferir a cantoria. No grupo, ainda firme, estava Birunga, veterana da turma da antiga das serenatas, da qual fazia parte meu pai. Eu estava com roupas rasgadas e um pouco machucado porque caíra sobre uma cerca, depois de escorregar na parede de um açude. Ficamos ali com o grupo de seresteiros até umas 3h da manhã.

A Florânia de bares e serenatas não existe mais como era, afinal tudo um dia passa. Mas, ouso dizer, Chaguinha e Maria José tinham vínculos e de certa forma exprimiram, durante parte de duas vidas, a cidade de bares e serenatas, espaços de encontros e desencontros, de construção de amizades e de desditas, de namoros e de rompimentos, de moídos (adoro a palavra).

Filho de Vicente Guedes, seresteiro dos bons, Chaguinha foi dono do bar mais frequentado, na primeira metade da década de 1980, de Florânia. Era o bar do pessoal modernoso. Isso mesmo, o homem que tinha um pé na tradição seresteira era proprietário do bar frequentado pelo pessoal que andava antenado com o mundo moderno, o bar onde “Florânia acontecia”, como um dia me disse um amigo. Como me lembrou Tião Bezerra, “as grandes festas, em Florânia, começavam ou passavam pelo bar de Chaguinha.” Ali todos se encontravam, passavam o dia bebendo e confraternizando e se preparavam para as festas no Clube Municipal e riam das presepadas de Sílvio de Zé Freire ou de Dodô de João Silva.

Chaguinha

Já não havia mais o bar e nem o clube – e agora não há mais Chaguinha. Resta-nos a memória.

Na mesma raia de onde veio e por onde não correu Chaguinha, a das serenatas, das quais o seu pai foi um animado e ativo participante, ficou Maria José. Quase sozinha, nunca solitária.

Maria José

Minha colega de escola na última turma na qual lecionou dona Candoca (professora de várias gerações), Maria José, doce e meiga, manteve-se firme como legítima expressão da Florânia das serenatas. Gostava de cantar e não perdia uma oportunidade de fazê-lo.

Turma do Primário com dona Candoca (acervo de Tião Bezerra)

Ouso dizer que Chaguinha e Maria José foram legítimas expressões de uma comunidade que não cansa de olhar para si mesma e para o seu passado. E assim o faz sem ficar parada no tempo e no espaço. Estiveram, os dois, sempre voltados para a reprodução dos modos de agir, de sentir e de pensar do grupo comunitário do qual faziam parte e, por isso, mantiveram acesa a centelha que nos faz, floranienses natos ou não, voltar ao torrão para amá-lo e para gozar de suas delícias – dos bares e das cantorias.

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