A França só quer ser o que não é

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.maio.24

Lembro-me do final de minha adolescência e início de idade adulta – quando as idas a Florânia eram frequentes – de uma fala de dona Antônia Freire (dona Neném Freire), mãe de primos queridos, que me deixou extasiado pela ironia e graça. Disse a matriarca: “Florânia só quer ser Natal e Natal só quer ser o que não é.”

Dona Neném acusava uma certa empáfia e uma mania de grandeza da pequena cidade do Seridó potiguar e da capital do Rio Grande do Norte e a fala dela me remete, sempre que vejo líderes políticos franceses se manifestarem, a uma França que vive do passado, quando foi superpotência, e que, nos dias atuais, apenas engrossa o caldo.

Seguem alguns exemplos.

1) Escrevi sobre a viagem diplomática feita por Carlos Lacerda à Europa e aos Estados Unidos, logo após a posse de Castello Branco na Presidência da República, para explicar os caminhos do regime que apeou o Presidente João Goulart do Palácio do Planalto. Na França, Lacerda se desentendeu com a imprensa ainda no aeroporto de Orly. Indagado sobre a existência de número excessivo de prisioneiros feito pelo regime, o então governador da Guanabara disse que 860 pessoas haviam sido presas, mas que no momento só 260 ainda se encontravam detidas. Os jornalistas resolveram provocá-lo perguntando sobre a especialidade dele de derrubar presidentes e Lacerda respondeu de imediato que não derrubava presidentes, mas que eles “caem como frutos maduros. De qualquer maneira, derrubei menos presidentes do que o general De Gaulle.” E completou, diante das provocações: “Quando dizem que a revolução brasileira recebeu auxílio do exterior, respondo que isso não é real. Antes da guerra a imprensa francesa apresentava Hitler como um pacifista, porque falava em paz. Hoje ela comete o mesmo erro quando acredita que Goulart era um reformador.” Indagado sobre o que se poderia esperar da visita de De Gaulle à América Latina, gracejou: “Banquetes e discursos.” E, com ironia, sapecou dizendo que a melhor representante diplomática enviada ao Brasil pela França, nos últimos anos, foi Brigitte Bardot. Um jornalista perguntou se a deposição de João Goulart contara com apoio dos Estados Unidos e, sem pestanejar, Lacerda foi quase cruel, dizendo que havia um engano, porque os americanos haviam contribuído mesmo para a libertação da França, em 1944. Mais uma pergunta: “O senhor foi comunista na juventude?”. Resposta: “Sim, como o ministro da Cultura francês, André Malraux.” Outra pergunta: “Como é que o senhor explica essa revolução sem sangue no Brasil?” Resposta sarcástica: “É porque as revoluções no Brasil são como as luas-de-mel nos casamentos, na França.” Perguntado sobre a existência de tortura a prisioneiros políticos, disse: “Não. Por enquanto ninguém raspou o cabelo de mulher alguma, como foi feito na França no dia da libertação de Paris.”

2) Em 1960, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Dean Rusk, visitava a França, quando o Presidente De Gaulle disse querer se retirar da OTAN. O mandatário francês afirmou que o exército norte-americano deveria deixar o território francês, ao que Rusk retrucou: “Isso inclui aqueles que estão enterrados aqui?”. De Gaulle silenciou.

3) Um turista norte-americano, Robert Whiting, já octogenário, chegou a Paris de avião e, na alfândega, demorou muito tempo para localizar o passaporte na bagagem de mão. Impaciente, o funcionário perguntou jocosamente: “O senhor já esteve na França?”. Diante da resposta afirmativa, o funcionário prosseguiu: “Então, o senhor sabe que deve estar sempre com o seu passaporte pronto”. Com voz baixa mas firme, Robert Whiting respondeu: “A última vez em que estive aqui, não precisei mostrá-lo”. O francês, visivelmente irritado, disse: “Impossível. Os americanos devem sempre mostrar os passaportes!”, ao que o velhinho explicou com voz baixa e olhar forte:
“Quando desembarquei de um navio de combate, na praia de Omaha, no dia D, em junho de 1944, para ajudar a libertar este país dos nazistas, não consegui encontrar um único francês para mostrar-lhe o passaporte.”

4) Numa Conferência Naval estavam almirantes da Austrália, do Canadá, dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra. Num intervalo dos trabalhos, todos – almirantes e assessores – conversavam em inglês, quando o representante francês quis saber porque os europeus precisam aprender muitas línguas, enquanto os americanos apenas aprendem inglês. “Por que sempre temos que falar inglês nessas conferências em vez de falar francês?”. O almirante norte-americano respondeu: “Provavelmente seja porque americanos, australianos, britânicos e canadenses fizeram, alguns anos atrás, uma aliança para que os franceses não precisassem falar alemão”.

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