Espártaco e Zumbi, um paralelo (3)
Os homens escravizam outros homens desde a Antiguidade mais remota, quando as primeiras civilizações deram o ar da graça no Oriente, passando por Grécia e Roma antigas.
Europeus modernos escravizaram sistematicamente africanos desde meados do século XV e o sistema escravocrata moderno só começou a ruir quando as ideias liberais ganharam força no continente europeu e entraram nas Américas pelos Estados Unidos, artífices, estes últimos, da Declaração de Direitos (1776).
A escravidão foi uma chaga na história do Brasil, no entanto não devemos esquecer que a escravidão africana não foi uma criação europeia, tampouco brasileira. Ademais, muitos escravos se tornaram senhores por aqui.
Em meio à diversidade das culturas africanas, a escravidão foi um elemento comum. Segundo Paul Lovejoy, em A escravidão na África, a escravidão foi essencial “para a ordem social, política e econômica de partes da savana setentrional, da Etiópia e da costa oriental africana havia vários séculos antes de 1600”, como “atividade organizada, sancionada pela lei e pelo costume”. Alguns reinos africanos já eram grandes impérios quando os portugueses chegaram por lá em meados do século XV. Se já eram ricos com a venda de escravos aos árabes, ficaram ainda mais com o comércio pela costa do oceano Atlântico. E, detalhe, eram os próprios africanos que operavam o comércio de escravos, tendo em vista a dominação europeia estar restrita a algumas áreas litorâneas. Em A manilha e o libambo, colosso majestoso escrito pelo diplomata, historiador, africanólogo, memorialista e poeta Alberto da Costa e Silva, recentemente falecido, as estruturas de poder africanas dependiam e muito da venda de escravos, pois garantia recursos para a compra “de armas de fogo, de munição e de uma vasta gama de objetos que davam status e prestígio aos seus possuidores. O sistema de troca de seres humanos (geralmente prisioneiros de guerra e presos comuns ou políticos) por armas de fogo e outros bens consolidara-se al longo dos séculos, desde o primeiro contato com os europeus na África, e não podia ser facilmente substituído pelo comércio normal”.
No Brasil, houve vários cenários escravagistas. Destaco dois: 1) o das plantations na quais imperava a monocultura-latifundiária-escravocrata-exportadora; ali os escravos eram explorados ao extremo e espancado e açoitado em pelourinhos, convivendo com o seu senhor, seu filho e um(uns) escravo(s), todos pardos ou mesmo negros, trabalhando juntos, com enxada na mão, cuidando de uma plantação de fumo e mandioca, do início da manhã ao final da tarde; 2) o da região mineradora, onde o escravo que vagando por faisqueiras conseguisse, ao final do dia, juntar ouro em quantidade, após meses (ou num golpe de sorte, num único dia), para comprar a própria liberdade. Bert Barickman, historiador norte-americano, diz no livro Um contraponto baiano, que em algumas fazendas do Recôncavo Baiano 59% dos senhores de terras tinham entre um e quatro escravos, 4,5% tinham mais de vinte escravos e somente 1% tinha 60 ou mais.
Quem rompeu o ciclo que normalizou a escravidão africana foi a entrada em cena da Inglaterra – e muito mais por questões ideológicas do que por questões econômicas, porquanto nascido em comitês, organizados por religiosos, com apoio de pessoas comuns, que distribuíam panfletos e arrecadavam dinheiro para a causa, geralmente direcionados para a publicação de panfletos que inflamavam a população, horrorizada com as condições de trabalhos dos escravos e propensa a boicotar produtos feitos por eles. Na sequência, os abolicionistas pressionaram o Parlamento até que, em 1833, a escravidão foi definitivamente abolida, vinte e seis anos após o fim do tráfico.
A ideia de que a escravidão foi abolida na Inglaterra por questões meramente econômicas não se sustenta, afinal muitas das mais ricas e ativas cidades inglesas, casos de Manchester e Liverpool, ganhavam muito dinheiro fazendo comércio com regiões escravagistas da África e da América. Como esclarece Manolo Florentino no excelente Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), o “tráfico seguia lucrativo e não passava pela cabeça de nenhum líder inglês sério que a demanda americana por bens britânicos pudesse aumentar com o fim da escravidão”. Quem apoiava o tráfico, disse Seymour Drescher, em Econocide, “poderia muito bem acusar os abolicionistas de agir contra seus próprios interesses”.
O movimento abolicionista brasileiro nasceu na esteira do movimento abolicionista inglês (tratarei disso em texto posterior).
Recentemente matéria da imprensa apontou que o 13 de maio perdeu espaço com a redescoberta da luta dos negros, a historiografia foi se atualizando porque “não faz muito sentido que o protagonismo da luta negra seja de uma mulher branca”, reforçando-se “no imaginário nacional outra data: o 20 de novembro, dia em que teria sido assassinado o último líder do quilombo dos Palmares, Zumbi (1655-1695), hoje reconhecido como um símbolo da resistência negra” (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57088128).
A luta de Zumbi, herói cultuado no Brasil, pouco teve a ver com os ideais abolicionistas, afinal ele foi líder de um quilombo formado também por escravos capturados nas fazendas vizinhas para que muitos deles fizessem trabalhos forçados em Palmares.