O golpe de 1964 foi movimento civil-militar (2)
Enfrentando dificuldades no front interno e no front externo, o presidente Castello Branco enviou à Europa Carlos Lacerda, então governador da Guanabara e um dos líderes civis do movimento armado que derrubou João Goulart, para explicar o que estava acontecendo no Brasil. O convite, após demorada e desgastante negociação, só se efetivou em 20 de abril, quase três semanas após a deposição de Jango.
Segundo Lacerda, Castello Branco disse que a “imagem da revolução está sendo muito deformada pela imprensa estrangeira”, apresentada “como um golpe fascista, como um golpe americano, e, sobretudo, há uma grande desconfiança com a história de os militares terem tomado o poder, e que quando os militares tomam o poder não saem mais.” Então, continuou Castello, o senhor terá de “esclarecer isso lá fora, junto aos governos e junto à opinião pública. O senhor vá aos governos que entender necessário, dê entrevistas.”
Financiado pelo Itamaraty, que pagou passagens e diárias, Lacerda partiu dois dias depois para Paris, com escalas em Madri e Milão, em voo da Varig. Foi perguntado, ainda no aeroporto de Orly, na capital francesa, sobre o grande número de prisioneiros feitos pelo novo regime. Sem pestanejar, o emissário de Castello Branco respondeu que haviam sido presas 860 pessoas, das quais 260 ainda se encontravam detidas. Provocado sobre ser especialista em derrubar presidentes, sapecou: “Eu não derrubo presidentes. Eles caem como frutos maduros. De qualquer maneira, derrubei menos presidentes do que o general De Gaulle.” Seguiu distribuindo bordoadas, inclusive na imprensa francesa, com destaque para o jornal Le Monde, a quem acusou de simpático ao comunismo. Quando um repórter discordou dizendo que o Le Monde era apenas objetivo, Lacerda foi incisivo: “Quando dizem que a revolução brasileira recebeu auxílio do exterior, respondo que isso não é real. Antes da guerra a imprensa francesa apresentava Hitler como um pacifista, porque falava em paz. Hoje ela comete o mesmo erro quando acredita que Goulart era um reformador.” Indagado sobre o que se poderia esperar da visita de De Gaulle à América Latina, gracejou: “Banquetes e discursos.” E completou afirmando que Brigitte Bardot foi a melhor representante diplomática que a França enviara, nos últimos tempos, ao Brasil. Quando perguntado sobre se a deposição de Goulart contara com apoio dos Estados Unidos, Lacerda pulou na jugular e disse que havia um engano, porque os americanos haviam contribuído mesmo para a libertação da França. E seguiu sarcástico. Uma pergunta: “O senhor foi comunista na juventude?”. Resposta: “Sim, como o ministro da Cultura francês, André Malraux.” Outra pergunta: “Como é que o senhor explica essa revolução sem sangue no Brasil?” Resposta: “É porque as revoluções no Brasil são como as luas-de-mel nos casamentos, na França.” Perguntado sobre a existência de tortura a prisioneiros políticos, disse: “Não. Por enquanto ninguém raspou o cabelo de mulher alguma, como foi feito na França no dia da libertação de Paris.”
O presidente Castello Branco o felicitou por “sua entrevista corajosa em defesa da revolução”, mas a reação francesa às declarações de Lacerda foi forte e o representante brasileiro foi informado que o general De Gaulle não o receberia. No entanto, ainda assim, dada a intervenção do governo brasileiro junto ao governo francês, Lacerda foi convidado para dar entrevistas no rádio e na televisão, participou de debates e foi convidado para um jantar com André Malraux, que disse ter gostado de suas entrevistas e de sua presença de espírito.
A viagem se estendeu por outros países europeus – Alemanha, Inglaterra, Itália e Portugal – e, depois, Estados Unidos, esta última encerrada de forma abrupta e deprimente, conforme relato do embaixador brasileiro em Washington Juracy Magalhães, contestado por Lacerda.