Memórias das putas sérias – I

por Sérgio Trindade foi publicado em 07.mar.25

Na cidade X, onde o vento cheirava a sal e os trapiches rangiam sob o peso dos sacos de açúcar e algodão, havia um antigo casarão de azulejos azuis, o qual despertava curiosidade e moralismo. Era o ano de 1909 e naquela imensa edificação funcionava O Paraíso – não por engano, mas por ironia fina de quem sabia que o céu, ali, era feito de bebidas, toalhas imaculadamente brancos, lençóis franzidos e promessas de amor vendido.

A dona, Madame Lúcia, uma viúva de bigode ralo e coração de ouro, administrava o bordel com mãos de ferro envoltas em luvas de veludo. Dizia com a autoridade de quem desfrutava da amizade dos poderosos do lugar: “Aqui, puta que é puta não rouba, não engana e não dá calote”. A frase era dura como dura era a dona, e era dita enquanto Madame Lúcia batia o leque no balcão de jacarandá, que separava o bar do salão.

As meninas da difícil vida fácil eram de origens diversas – algumas fugidas de maridos brutos, outras órfãs da seca, outras ainda jovens de família que perderam a honra, como se dizia de mocinhas desvirginadas antes de casarem –, e seguiam um código de honra: tratavam os clientes com riso largo, muito carinho e bebida farta. O preço era combinado antes do ato, o qual só deixava de ser potência quando as partes entravam em acordo. Tudo muito justo.

A famosa casa de recurso O Paraíso virou ponto de encontro de oligarcas e coronéis, comerciantes ricos e remediados, fazendeiros abastados e outros nem tanto, funcionários públicos, profissionais liberais, poetas e marinheiros de passagem por X. Às vezes até até padres compareciam, disfarçados.

A casa tinha fama de bordel sério, onde ninguém dormia com a carteira vazia ou o coração partido. Até que, nos anos 1940, chegou Verônica Franco – ou Jeanne-Antoinette, como preferia ser chamada.

Alva de olhos castanhos, Verônica trazia no colo um morcego pintado de verde-e-amarelo, que apresentava como papagaio. “Chama-se Zé Moxoró”, dizia, enquanto o bicho, agitado e preso a uma corrente de prata, emitia sons inaudíveis.

Verônica não respeitava os códigos das putas sérias. Punha soníferos na bebidas dos clientes, furtava-lhes o dinheiro das carteiras e dos bolsos e, quando saía às ruas para programas extras, cobrava o dobro e até o triplo do que havia sido previamente acertado.

As outras mulheres, inicialmente resistentes, foram seduzidas pelo dinheiro fácil. “É a modernidade!”, gargalhava Verônica, acendendo um cigarro com uma nota de cinquenta carás, moeda do país. Aos poucos, O Paraíso degringolou, apodreceu e começou a matar o espírito no qual foi forjado. Os fregueses antigos sumiram, substituídos por trambiqueiros e turistas bêbados. Também escafederam os políticos tradicionais. Ficaram os mais desavergonhados entre os desavergonhados.

Há quem diga que o início do fim foi quando Zé Moxoró, o falso papagaio, atacou um cliente assíduo e influente, mordendo-lhe o dedo. O homem, ensanguentado, ameaçou processar o bordel. Verônica, saliente e desbocada, gritou: “Processa, seu filho da puta! Zé Moxoró é meu divertimento. Não abro mão dele, por nada!”.

A notícia correu, e o famoso lupanar começou a ser chamado de Inferno – primeiro em tom de piada, depois com raiva. Até Madame Lúcia, já nonagenária e cansada, jogou a toalha: “Essa corja que chegou recentemente não tem ética, não tem vergonha, não tem… não tem nada de bom!”, resmungou.

O casarão de azulejos azuis, agora pichado e decadente, ainda resiste. Dizem que Zé Moxoró  é quem mais manda no Inferno, depois de Verônica. E nas noites quentes, quando o vento sopra do mar, é possível ouvir o eco das risadas antigas – da época em que o Inferno ainda era Paraíso, e as putas sérias sabiam que a honra, mesmo quando todos estão na lama, é questão de regra.

Não há mais putas, não há mais cafetina, não há mais clientes, mas a vaidade e o orgulho ainda permanecem. Os roubos e furtos também.

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