Memórias das Putas Sérias – II
Em X, cidade localizada no norte do país e capital do estado Z, onde o rio Pitu desenhava curvas lentas como quem não quer chegar ao mar, o século XIX arrastava-se com preguiça bovina. O abrasador sol de 40º amolecia corpos e vontades.
X era uma urbe de casas acanhadas. Algumas de alvenaria, outras meio alvenaria e meio taipa. A periferia, não muito distante do centro, por casas de taipa com telhados de palha.
Nas ruas de terra batida, os cavalos levantavam nuvens de poeira, a vida seguia o ritmo das carroças que trafegavam pelas artérias urbanas.
O rio Pitu, largo e barrento, era a veia aberta da cidade: em suas margens, os trabalhadores descarregavam mercadorias; das suas águas salgadas os pecadores tiravam o seu sustento diário.
À noite, quando o calor amainava, X transformava-se num casulo de silêncio ou num arruado de sonâmbulos que vagam procurando o que fazer. Seu coração batia na Praça da Matriz, onde a igreja de Nossa Senhora da Apresentação abrigava missas vazias. A iluminação era pouca, com alguns lampiões a querosene atraindo mariposas, não gente. Os homens importantes – Paulo César Silveira Machado, filho de Pedro Cícero Silveira Martins, e senador do estado – viviam em casarões de azulejos portugueses, escondidos atrás de muros altos onde cresciam buganvílias. Atrás desses muros, decidia-se o destino do algodão que vestia a Europa e do açúcar que adoçava o chá dos ingleses, o qual era negociado rio Pitu adentro, próximo à cidade de Mearim, onde estava localizada a Casa de Comércio Mandacaru, fundada pela família Silveira Machado, a qual remonta ao início da colonização da Feitoria Z, depois província e estado.
Era chefe da família Silveira Machado o senador Paulo César Silveira Machado (Silveira Machado), o mais velho de cinco irmãos, três homens e duas mulheres.
Foi Pedro Cícero Silveira Machado, homem de bigode cerrado e olhos frios como moedas de prata e pai de Paulo César, o idealizador da Casa de Comércio Mandacaru, maior exportadora da província, quando o país ainda era uma monarquia nos moldes europeus. Todo algodão e açúcar eram exportados pela empresa dos Silveira Machado. Outros produtos, como cera-de-carnaúba, peles, etc, também saíam pelo porto criado às margens do rio Mearim, próximo à Casa de Comércio Mandacaru.
À X só vinha quem tinha negócios a resolver com o governo. Por isso, a cidade era pouco mais do que um arruado até o terceiro quartel do século XIX, quando os filhos de Pedro Cícero, capitaneados por Paulo César, resolveram mudar os negócios para o porto de X.
Daí em diante e por algumas décadas o quase cheiro acre de algodão se misturava ao doce cheiro do açúcar dominaram as várzeas do rio Pitu, no bairro Ribeirão de Baixo, onde se localizada no porto da cidade.
Z passou a viver sob o jugo silencioso dos Silveira Machado, família que comandava o comércio de açúcar, algodão e cera-de-carnaúba como verdadeiros potentados. A cidade, porém, ainda dormitava de dia e de noite e só começou a sair da letargia noturna quando as prostitutas d’O Paraíso, o bordel entre os bordeis, então regido pela rigorosa Madame Lúcia começou a funcionar.
Mas a riqueza não pingava para o povo. Os trabalhadores, negros libertos e caboclos de pele curtida pelo sol, moravam em palhoças à beira do rio, onde as crianças brincavam com ossos de gado vacum e os adultos rezavam para Nossa Senhora da Apresentação, Nossa Senhora do Rosário, Santo Antônio, São Sebastião e outros santos protegê-los. A pouca alegria vinha aos sábados, quando o mercado público abria suas barracas de produtos variados e os violeiros tocavam modas que falavam de amores impossíveis, e aos domingos, quando os padres rezavam missas nas diversas igrejas da cidade.
À margem da rua da Estação, no alto, era possível acompanhar a chegada e a partida dos trens. Ali vislumbrava-se os trilhos do trem sumir no horizonte como linhas de um destino esquecido E ali, bem próximo erguia-se O Paraíso, prostíbulo de fachada azul-celeste e janelas sempre entreabertas, único lugar onde a rigidez de X afrouxava.
Madame Lúcia, viúva de um comerciante de peles, administrava o lugar com mão de ferro e coração de mãe: “Aqui, puta é profissão digna! – anunciava, de colares de ouro balançando no peito. “Quem roubar cliente, quem mentir, quem enganar, cai no rio Pitu de cabeça pra baixo!”.
As regras eram claras. As moças – Maria do Ingá, Francisca de Caraúbas, Luzia do Sertão, Joana Filó e outras – cobravam preços justos, serviam bebidas e petiscos e ouviam atentamente as histórias dos homens. Até os Silveira Machado frequentavam o lugar, embora Paulo César, pilar moral da sociedade, chegasse sempre de capa negra e chapéu abaixado, para não ser reconhecido por quem passava na rua. Nas noites de lua cheia, quando o calor apertava, o salão do bordel enchia-se de cantorias. Os homens, quando embriagados, gritavam: “Essa cidade é um cemitério de vivos!”. Madame Lúcia, rindo muito, prontamente rebatia: “Pois aqui a gente ressuscita!”.
Tudo mudou quando Verônica Franco desceu na rodoviária de X, vomitando correção e ambição coberta por capa azul. De pele alva, olhos castanhos e dentro de um vestido simples e decotado, usando nome artístico de Jeanne-Antoinette, e trazendo a tiracolo um morcego de asas quebradas, pintado de verde-e-amarelo, que chamava de Zé Moxoró, tomou o rumo d’O Paraíso em 1939. Mas até lá o percurso foi longo…
A todos a morena apresentava o companheiro de viagem: “É meu papagaio de estimação!”, mentia, exibindo o bicho amarrado numa corrente. “Ele canta o hino nacional”.
O freio às investidas de Verônica era dado por Madame Lúcia. Quando a velha cafetina morreu, o velho bordel foi tomado por ratos e vermes, até perder a honra que um dia cultivou e manter apenas o passado guardado na memória de todos, das putas principalmente.
À agonia d’O Paraíso seguiu-se a agonia da cidade. Ambos ainda vivem, mas são pálidas lembranças do que um dia representaram. Nunca mais foram os mesmos. Faltam-lhes a dama que um dia lhes deu um norte.