Beco sem saída

por Sérgio Trindade foi publicado em 18.fev.25

Muito se fala acerca do comportamento dos nossos políticos, como se nós vivêssemos como vestais. Ora, os nossos homens públicos são homens públicos por nossa vontade, são levados ao exercício de mandatos eletivos porque nós, como povo, o alçamos à condição de vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, presidente da república. Eles são a expressão do que nós somos. Com todas as virtudes e defeitos.

Se alguém duvida, olhe, por exemplo, nosso trânsito caótico e alucinados, com motoristas e motoqueiros avançando sinal, com motoqueiros, feito loucos, subindo calçadas, com pedestres, a 10m da faixa, andando em meio aos carros.

Como atuam os barnabés e comissionados do serviço público no escondido de seus birôs e gabinetes?

Como agem alunos e professores em nossas escolas?

Afinal, como devemos agir?

Platão fez exatamente esta pergunta quando contou, no livro II d’A República, a história de Giges, um camponês que achou um anel que lhe permitia ficar invisível. Imediatamente percebeu que tal poder poderia lhe garantir, por exemplo, sem ser percebido, entrar no palácio e matar o rei. Para quem não leu o filósofo grego, aí vai um fragmento da história extraído da referida obra: “Era ele um pastor que servia em casa do que era então o soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lhe e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam como se tivesse ido embora. (…) Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder”.

Ninguém aqui mataria rei ou presidente algum. Mas vamos e venhamos, a história de Giges atinge alvo de forma precisa, afinal a ética ali exposta diz respeito a como decidimos agir quando ninguém está observando o que estamos fazendo. Por isso, a pergunta feita por Platão segue de pé e dela podem derivar perguntas prosaicas, do tipo: Você gasta o tempo de trabalho jogando conversa fora nos corredores da empresa ou da instituição na qual trabalha? Você ficaria com um objeto de valor esquecido por um colega numa mesa? Você estaciona, sem permissão, em fila dupla para pegar o(s) filho(s) na escola? Você ficaria ou devolveria aquele dinheiro que foi depositado por erro na sua conta e ninguém foi atrás?

É simples e não precisa de malandragem alguma. Não há necessidade alguma de hermenêutica para confirmar quando somos corretos. Qualquer criança é capaz de apontar, de forma simples e precisa, quando estamos certos e quando estamos errados. Sem moralismo algum.

Pode ser vantajoso para qualquer um de nós cometer, escondidinho,  algum delito. O erro, porém, toma a consciência e, por mais que festejemos a vitória do erro, ele, o erro, perseguir-nos-á por toda a vida. E muitos saberão do quão malandro nós fomos. E seremos apontados como desonesto, ladrão, etc. Ademais, o erro que se perpetua como acerto é péssimo para nossa vida coletiva. Portanto, resistir a ele exige certo heroísmo pessoal e coletivo.

Um exemplo é o do professor Platão, Sócrates, condenado a beber cicuta, ao invés de fugir. No seu pior momento, aquele no qual teve de decidir entre viver e morrer, o mestre escolheu respeitar as leis de Atenas, sob as quais ele havia vivido e pelas quais iria morrer.

É um exemplo ao mesmo tempo heroico, histórico e extremo, mas que indubitavelmente fixou um padrão, ainda que tenha demonstrado a opção pela ética como uma escolha precária. Mesmo havendo boas razões a favor, elas nunca serão realmente suficientes. Ainda mais num país como o nosso, no qual a honra é virtude descartável e facilmente comprada. Ou como diz Platão: “Ninguém é justo por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente (…). Efectivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça. (…) Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser”.

Resumindo: vale a pena roubar se meus parceiros estiverem a postos para esconder meu delito. Somente para quem tem efetivamente a honra como um valor inegociável, é possível ganhar alguma coisa cometendo delito(s), porém não é razoável que possamos viver uma vida decente assim. Logo, é necessário reconhecer: a ética é valorosa e deve ser sempre considerada porque a nossa vida é longa – e vai para muito além do tempo que aqui permanecemos. Sócrates está aí para nos lembrar disso.

O Brasil soçobra porque vem premiando a(s) escolha(s) antiética(s) e recusando-se, nas encruzilhadas, a beber cicuta. Por isso, não pode reclamar do caos no qual vive. Não pode reclamar do esgoto que o cerca e no qual proliferam as ratazanas.

Aqui não há lugar para Sócrates, o filósofo-cidadão ateniense.

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