Ciência, ideologia e política
O cientista e filósofo húngaro Imre Lakatos (nascido Imre Avrum Lipschitz), discípulo de Karl Popper, disse em seu trabalho Science and pseud-science que a demarcação da fronteira entre ciência e pseudociência traz problemas muito sérios para institucionalizar a crítica: “A teoria de Copérnico foi considerada pseudocientífica e, portanto, proibida pela Igreja Católica em 1616. Em 1820, foi retirada do Index, pois àquela altura a Igreja entendeu que os fatos a haviam comprovado e, portanto, ela poderia ser considerada científica. Em 1949, o Comitê Central do Partido Comunista Soviético disse que era pseudocientífica a genética mendeliana e mandou matar aqueles que a defendiam, a exemplo do que ocorreu com Vavilov (posteriormente, a genética mendeliana foi reabilitada). Entretanto, o partido manteve o direito de definir o que era científico e poderia ser publicado e o que era pseudocientífico e deveria ser punido. No Ocidente ocorreu algo semelhante, com o establishment liberal permitindo ou negando o direito de uso da palavra ao que é considerado pseudocientífico. Cada um dos julgamentos estava/está baseado em algum critério de demarcação, razão pela qual os limites entre ciência e pseudociência não é um pseudoproblema de pensadores de gabinete – ele tem sérias implicações éticas e políticas”.
O que Lakatos aponta aí é aquilo que Karl Popper batizou como obstáculos ideológicos ao progresso da ciência. Segundo o pensador austríaco, mesmo a supressão pode ser instrumento para o progresso da ciência, conforme é possível verificar do martírio de Giordano Bruno e do julgamento de Galileu Galilei.
Qualquer pessoa que estude seriamente a ciência entende a alegada neutralidade e isenção de valores da ciência como não-autêntica. Para muitos isso é uma ideia estimulada por um fenômeno cada vez mais comum, a saber, o desacordo entre especialistas e estudiosos que se põem em lados opostos de um debate politicamente sensível sobre a essência do fato científico. Tal ocorre porque as questões que dizem respeito à ciência são politicamente importantes, conforme o homem comum pôde perceber recentemente com a crise da Covid e percebe cotidianamente nas discussões sobre as questões ambientais.
Popper se entrincheirou e passou toda a sua vida intelectual lutando contra o relativismo moral e intelectual, o qual ela considerava a “principal doença filosófica de nosso tempo”. Por isso, buscou demarcar o limite entre a ciência e a não-ciência em termos de um método que pudesse ser comum a todas as ciências. Daí a necessidade de determinar as condições universais precisas sob as quais uma teoria é científica, pois tal caminho nos ofereceria elementos por meio e através dos quais seria possível afastar a poluição intelectual que macula a produção científica. Tal percurso, porém, não significa que devamos abandonar as ideias novas. Elas “devem ser consideradas”, diz Popper n’O mito do contexto, “preciosas e cuidadosamente acarinhadas – sobretudo se parecerem ser um pouco extravagantes”, sem que isso signifique que estejamos “desejosos de aceitar novas ideias apenas pelo facto de serem novas. Mas devemos estar desejosos de não suprimir uma ideia nova, caso não nos pareça muito boa”. Tampouco o percurso deve cair na vala comum de abrir a guarda para novas ideias apenas porque são novas. Manter certa dose de dogmatismo é preciso e precioso, afinal sem luta forte e constante pela sobrevivência de velhas teorias, “nenhuma das teorias concorrentes pode mostrar o seu vigor – ou seja, o seu poder explicativo e o seu conteúdo de verdade”.