Como esquecer a ditadura de 64 – Parte 3
Na madrugada de 31 de março de 1964, quando as tropas do general Mourão Filho desceram de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, não marchavam sozinhas. Atrás dos tanques e das fardas vinham governadores, políticos civis, bispos, empresários e jornalistas, todos embalados pela promessa de restaurar a ordem – ou, como se dizia então, de livrar o país da ameaça comunista.
Entre os civis mais entusiasmados estava Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, que ofereceu logística, apoio político e, como se verá mais tarde, uma certa hipocrisia histórica. Também participaram ativamente os governadores Adhemar de Barros, em São Paulo, e Carlos Lacerda, no então estado da Guanabara. Lacerda, aliás, sonhava com a presidência – acabou cassado alguns anos depois pelos próprios militares que ajudou a colocar no poder. Sonho curto.
Ulisses Guimarães, o Senhor Diretas, que entraria para a história como símbolo da redemocratização, também esteve ao lado daqueles que golpearam a ordem instituída. Em 1964, não apenas apoiou o golpe como participou da formulação de medidas para excluir adversários políticos da vida pública. Era o cálculo frio da política; num país rachado, quem ficasse no meio do caminho seria atropelado.
Mas Ulisses não foi o único a mudar de lado conforme os ventos da história. José Sarney, Aureliano Chaves e até Marco Maciel, todos nomes de peso na política da ditadura, acabaram frequentando com desenvoltura os salões da Nova República, depois de que pularam do barco quando ele ameaçava naufragar. Fizeram da crítica à ditadura o passaporte para a reinvenção política. A coerência, nesse caso, foi artigo de luxo.
Na Igreja Católica, o movimento foi parecido. Ela também teve seus pecados. Enquanto alguns bispos permaneceram alinhados à doutrina da segurança nacional, outros mudavam de lado conforme os porões iam se iluminando. Em 1964, o então bispo D. Paulo Evaristo Arns manifestou apoio às tropas que derrubaram João Goulart. O mesmo D. Paulo que, anos depois, quando já cardeal em São Paulo, tornar-se-ia o mais corajoso defensor dos direitos humanos; passou a documentar sistematicamente casos de tortura – tarefa feita com discrição, coragem e apoio do jornalista Ricardo Kotscho e do pastor Jaime Wright. Não foi o único. D. Hélder Câmara, antes simpático à ideia de “livrar o Brasil do caos”, tornou-se uma das vozes mais contundentes contra o autoritarismo e a tortura. D. Eugênio Sales, influente no clero conservador, flertou com o movimento antes de assumir posições mais críticas à ditadura.
O golpe de 1964 teve muitos autores, mas seus arrependidos não são menos numerosos. Há quem diga que mudaram de ideia diante das evidências. Outros preferem falar em amadurecimento político. O fato é que a virada dos ventos não poupou ninguém. À medida que os anos passavam e o regime autoritário mostrava seus dentes – com censura, tortura e desaparecimentos de adversários políticos –, alguns dos entusiastas do golpe começaram a recalibrar o discurso. O problema deixou de ser o comunismo e passou a ser o Ato Institucional nº 5 (AI-5), imposto à nação em dezembro de 1968. Foi ele o ponto de inflexão, pois deu aos militares carta branca para fechar o Congresso, intervir nos estados, cassar mandatos e prender sem julgamento. Ali foi momento-chave, foi ali que muitos perceberam que o regime que ajudaram a parir havia crescido demais e ultrapassava os limites do razoável. Rugia. Mordia. Matava.
Alguns saíram de fininho. Outros viraram críticos ruidosos. Em 1977, Ulisses Guimarães, o mesmo que ajudara a derrubar Goulart, subiu à tribuna da Câmara para dizer que o Brasil vivia uma “ditadura abjeta”. O mesmo Ulisses que, treze anos antes, havia silenciado diante da cassação de colegas e fizera esboço do AI-1, recusado pelo regime que nascia. A memória política brasileira, como se vê, tem grande capacidade de renovação seletiva.
A anistia de 1979 foi generosa com todos: com os que lutaram contra a ditadura, mas também com os que ajudaram a mantê-la. A reconciliação sempre veio antes da verdade. E com ela, o esquecimento. Mas o mais notável não foi a mudança em si. Foi a naturalidade com que muitos a fizeram – como se o apoio ao golpe fosse um acidente de juventude, uma nota de rodapé na biografia. Em 1984, quando as Diretas Já tomaram as ruas, poucos lembravam que alguns de seus líderes deram vivas ao general Castelo Branco duas décadas antes.
No Brasil, até os arrependimentos são pragmáticos.