Coronelismo e coronéis (1)

por Sérgio Trindade foi publicado em 18.jan.25

Desde que comecei a estudar coronelismo, deparo-me com o estranhamento do público ao qual me dirijo quando digo que, durante a República Velha, quando o fenômeno nasceu, os coronéis não podiam fazer tudo o que queriam ou que o coronelismo significou não o aumento do poder dos coronéis mas a diminuição desse poder ou que existiam coronéis antes do coronelismo e eles continuaram existindo depois que o coronelismo morreu.

Recorra a qualquer autor que aborde a independência do Brasil e verá que todos são unânimes em dizer que as elites/as classes dominantes/as classes dirigentes, compostas por fazendeiros, comerciantes ligados aos setores importadores e exportadores e suas clientelas, tomaram as rédeas do país nas mãos e criaram estruturas para manter praticamente intocado os setores produtivos, sustentados pelo binômio latifúndio e escravidão. A presença do príncipe D. Pedro, filho do rei D. João VI, e herdeiro do trono luso lhes forneceu a chance de se separar de Portugal sem recorrer à mobilização popular. As poucas vozes que pregavam rumos industrializantes e a abolição do tráfico negreiro foram silenciadas, porquanto os grupos que estavam à testa do Estado e curtidos nos princípios liberais, dali só extraíram o que lhes era de interesse. O resultado foi a montagem de um ideário profundamente atrasado e antidemocrático, com o Estado, do ponto de vista estritamente político, montado em bases centralizadoras – com os municípios dependentes dos governos provinciais e estes dependentes do governo central.

Somente na segunda metade do século XIX, o crescimento econômico acentuado deixou escancarado o imenso desequilíbrio entre poder econômico e poder político, com o sistema político concebido na década de 1820 mostrando-se insatisfatório entre as décadas de 1870-80.

Tal ocorria porque as novas elites surgidas na esteira da economia cafeeira e produtoras da maior parte da riqueza nacional não se sentiam representadas ou estavam sub-representadas na vida pública nacional e clamavam por mudanças, a maioria comprada pelo Partido Republicano.

No entanto, a mobilização desses grupos não foi suficiente para criar o clima necessário para a superação do Monarquia e a construção da República nos moldes revolucionários ou legais, e o novo regime, tal qual o que pretendia destruir, foi feito sem povo – por meio de um golpe militar.

Caída a Monarquia, era hora de construir legalmente a República e dos grupos que disputavam a primazia, o dos fazendeiros ligados aos interesses do cafeicultura tomou a dianteira, mas credores dos fazendeiros de outros cantos do país, razão pela qual era urgente pacificar a nação para, na sequência, construir as estruturas que garantiriam aos fazendeiros distribuir as cartas no campo político, feito só realizado da gestão de Campos Sales em diante, quando da criação da política dos governadores.

Voltemos um pouco.

Proclamação a República, em 1889, o Estado se fez mais presente nos rincões e tal presença confrontou o poder privado dos potentados rurais, antigos coronéis (ou descendentes deles), que reagiram ao discurso da igualdade preconizado pelos republicanos. Logo, porém, Estado e fazendeiros fizeram acertos e o governo federal buscou o apoio dos grupos familiares estaduais e estes as lideranças políticas nos municípios. Era a gênese do fenômeno coronelista.

Os coronéis eram, via de regra, proprietários de terras que tinham o seu poder assentado na extensa base rural por eles controladas. Um adendo: havia coronéis comerciantes, médicos, advogados, padres, entre outros.

Quanto mais terras e recursos materiais tivesse o coronel, mais gente dependia dele e maior seria o seu poder eleitoral e político. O clientelismo, as relações de favor e a força bruta eram os instrumentos de que se utilizavam para garantir o controle político nas suas localidades. No limite, conseguiam ganhar eleições efetivamente perdidas, fraudando-as. Victor Nunes Leal, em obra seminal, diz: “Duas falsificações mais importantes dominavam as eleições da Primeira República: o bico de pena e a degola ou depuração. A primeira era praticada pelas mesas eleitorais, com funções de junta apuradora: inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos, e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena toda-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos. A segunda metamorfose era obra das câmaras legislativas no reconhecimento de poderes: muitos dos que escapavam das ordálias (isto é, das fraudes nas mesas eleitorais e juntas apuradoras) tinham seus diplomas cassados na provação final (pela Comissão de Verificação de Poderes, que determinava se um candidato eleito podia tomar posse ou não)”.

Durante grande parte da República Velha (1889-1930), segundo o mesmo autor, os coronéis influenciavam diretamente a escolha da população rural. O poder privado dos proprietários rurais e o regime político representativo estavam misturados, pois a manutenção do poder de um coronel se estabelecia por meio da troca de favores com a esfera pública, com o objetivo de manter o controle de votos da população rural, formada por trabalhadores que constituíam uma massa indiferente e apática, sem interesse pelos assuntos políticos e pelas consequências que o seu voto poderia gerar.

O modelo descrito no clássico Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, demonstra que a população rural estava submetida aos coronéis e não vislumbrava o que o espaço da política pudesse efetivamente trazer de melhoria de vida para ela. Assim, o voto de cabresto, comprado e controlado pelo coronel, configurava-se, dentro do contexto histórico da República Velha, no personalismo da época.

Para que haja coronelismo não basta que haja coronéis. Estes, como manifestação de hipertrofia do poder político privado no Brasil, são anteriores ao coronelismo e seguem existindo mesmo com o fim do fenômeno, pois coronelismo é, reforço uma vez mais aqui, um sistema perpassado por uma rede de relações entre poderes municipal e estadual e poder federal.

Abordaremos o assunto mais detidamente no próximo texto.

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