O coronelismo é fenômeno datado (1)

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.nov.23

Um dos assuntos mais controvertidos das ciências sociais é o coronelismo, apresentado, em linhas gerais, como um fenômeno municipal se sustenta em relações clientelistas, para prestar assistência a uma população apoio algum do poder público e que se manifesta politicamente, segundo Janotti, em O coronelismo: uma política de compromissos, como um fenômeno de exercício do poder “por chefes políticos sobre parcela do eleitorado, com o objetivo de fazer o eleitor escolher candidatos indicados por eles, mas que essa visão estreita demais o fenômeno”, tendo em vista que ele não envolve apenas “os aspectos políticos da dominação de classes, mas abrange inúmeras implicações ao longo do processo histórico no qual se forma a sociedade brasileira”.

A expressão coronelismo foi criada por Victor Nunes Leal no livro seminal Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, publicado originalmente em 1949. Para ele o fenômeno era “resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada” e não apenas a sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico da história colonial brasileira, mas “uma forma peculiar de manifestação do poder privado (…), uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”, um compromisso entre o poder público e os chefes locais, por meio de “uma troca de proveitos entre o poder público, cada vez mais fortalecido, e o decadente poder privado dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”  e que só pode ser adequadamente compreendido no seio da estrutura agrária do país, pois é ela quem fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado que foram fortes no Brasil e que sobreviveram em alguns recantos do interior, porquanto o trabalhador rural, nos rincões, desprovido da mínima assistência do Estado, quase sempre tinha o patrão como um benfeitor, sendo praticamente impossível imaginá-lo, analfabeto ou semialfabetizado e sem acesso aos serviços públicos, dotado de consciência cívica, cioso dos seus direitos individuais e sociais.

Embora o Estado republicano tenha se feito mais presente nos rincões, não é possível esquecer que se hoje o Estado brasileiro não cumpre com o básico para atender à maioria da população, durante o período que vai da proclamação da República (1889) à ascensão de Vargas à Presidência da República (1930), início do fim do sistema coronelista nos moldes propostos por Victor Nunes Leal, ele era ainda mais frágil frente ao poder privado dos grandes senhores de terras, pois suas normatizações eram desconhecidas e dificilmente chegavam à população rural, o que fazia o poder público refém dos coronéis.

A historiografia brasileira reconhece que as raízes do fenômeno coronelista estão fincadas no período monárquico e o seu auge já no período republicano, quando, diz Janotti, o “coronel apenas amplia o seu papel dentro da nova estrutura política”, mormente entre a Presidência do paulista Campos Sales e a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas.

A crise econômica e política que abala os alicerces do poder político culminou na proclamação da República (1889) e, com ela, na reformulação das relações de poder entre a União e as unidades federadas – estados e municípios, corporificada na primeira Constituição republicana, que teve a Carta Constitucional norte-americana como modelo.

A primeira Constituição republicana, segundo um estudioso da Primeira República, enquadra o Brasil na tradição liberal norte-americana de organização federativa implantada “em substituição ao centralismo do Império” e que garante “aos estados uma enorme soma de poder, que se distribui entre os estados e os municípios”. Sobre esse princípio é montada a força política dos coronéis no nível municipal e das oligarquias nos níveis estadual e federal. A centralidade conferida aos direitos individuais, deixando de lado a preocupação com o bem público, ou seja, a virtude pública ou cívica que está no cerne da ideia de República, funciona como barreira no processo de construção da cidadania no Brasil.

A Constituição de 1891 garante autonomia excessiva aos estados, visto que a eles foi dado, conforme Aliomar Baleeiro, em Constituições Brasileiras, o direito de legislar sobre muitos e variados assuntos, desde que, conforme expresso no artigo 63, fossem respeitados “os princípios constitucionais da União”, dispositivo que permite aos estados, entre outras coisas, compor um sistema eleitoral e judiciário próprio e organizar força militar, bem diferente do período monárquico, quando os presidentes de província eram representantes do Imperador e passavam pouco tempo no cargo, sendo rotineiramente transferidos de uma província para outra ou mesmo para o Rio de Janeiro para ocuparem posições-chave na administração central ou para se ocuparem de funções menores, nunca estando nas províncias tempo suficiente “para enraizarem-se politicamente”.  Assim, o modelo federativo suplanta, segundo M. E. Resende, “o sistema de relação direta entre os detentores do poder local e o centro de poder nacional prevalecente no Brasil Império”; governadores ou presidentes de cada estado são eleitos e detêm uma enorme soma de poder que lhes advém do próprio texto constitucional, o que lhes garante dirigir e controlar “a política do estado a partir de poderosas máquinas partidárias estaduais”, engrenagem que será azeitada pela presença dos coronéis,  encarregados de chefiar politicamente os municípios. Resende pontua que o poder dos coronéis não advém de sua riqueza, mas, segundo Raymundo Faoro, no clássico Os donos do poder, de um “pacto não escrito (…). O vínculo que lhe outorga poderes públicos virá, essencialmente, do aliciamento e do preparo das eleições, notando-se que o coronel se avigora com o sistema da ampla eletividade dos cargos, por semântica e vazia que seja essa operação”.

O artigo 68 da Constituição de 1891, que determina como os estados se organizam “de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”, é fundamental para se entender o alcance do poder dos coronéis, que, aliados às oligarquias estaduais, representadas principalmente pelos governadores, costuram uma intensa rede de favores junto ao Governo Federal, como registra ensina Victor Nunes Leal (1997), para quem “o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente senhores de terras. (…) Desse compromisso fundamental resultam características secundárias do sistema “coronelista”, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais”.

O alvorecer da República redefiniu o poder privado local em função do federalismo. Logo, esse fenômeno – o coronelismo – não pode ser confundido com as práticas históricas de exercício de poder privado no Brasil, práticas tradicionais e atemporais que atravessam a história do país, pois demarca uma mudança qualitativa na tradicional dominação do poder privado. Embora sendo também uma forma de exercício de poder privado, ele não é uma prática. Tem uma identidade específica, constitui um sistema político e é um fenômeno datado, da transição da Monarquia para a República. Por isso, Faoro acentua a função eleitoral do coronel, tirando-lhe “as albardas centrais, não para autonomizá-lo, mas para entregá-lo aos poderes estaduais”. Maria Isaura Pereira de Queiroz, em O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, atesta que antes da instauração da República “os cidadãos que votavam precisam justificar uma renda anual mínima de 200$000 – quantia elevada na época. O voto destes cidadãos constituía, pois, um bem cujo valor era conhecido, e que lhes permitia ‘barganhá-lo’ contra favores e benefícios. Uma vez estendido o voto à maioria dos cidadãos na República, com exceção dos analfabetos, o modelo persistiu, tanto entre os chefes políticos maiores e os chefes políticos menores a eles subordinados, estes detentores às vezes de uma centena de votos; quanto entre chefes políticos menores e os próprios eleitores. Era ‘normal’, no período das eleições, saírem os chefes políticos e seus cabos eleitorais em ‘tournées’ pelo interior, carregados de presentes para seus eleitores e famílias – carregados também de promessas, sendo que não raro, num envelope, juntamente com a cédula de voto, havia outras de mil réis (…)”.

Tais proposições confirmam a tese de Leal (1997), quando este caracteriza o coronelismo como um momento de conexão entre poder público e poder privado, que enfatiza sempre a fragilidade da municipalidade frente a um federalismo marcado contraditoriamente por uma tendência altamente centralizadora do poder político. É importante ressaltar uma especificidade, para o qual Leal chama frequentemente a atenção em sua obra – o nascimento da república num momento de decadência econômica do setor agrícola e o ensaio dos primeiros passos de uma urbanização e industrialização mais efetivas, que permitem ao coronel impor-se, quase sempre, por meio do confronto com poderosos rivais.

Mesmo vitorioso nas pelejas, o coronel que assume a chefia da política municipal não detém o controle político do município de maneira incontestável, dado que o clima de tensão prevalece em virtude da existência, ressalva Resende, de “outro potentado local à espera de uma oportunidade para desalojá-lo da liderança municipal”. Mas garantida “a liderança no seu município, o coronel, de quem todos dependem”, forma uma base de poder local organizada sobre alianças com outros coronéis, grandes e pequenos, geralmente líderes nos vários distritos que compõem o município, com personagens importantes e destacados da localidade (médicos, advogados, padres e funcionários públicos federais e estaduais, comerciantes e farmacêuticos, entre outros), além de uma guarda pessoal, formada por jagunços e cangaceiros, e que atua como seu exército civil e quando necessário, transforma-se numa milícia de jagunços e cangaceiros a serem utilizadas em situações de confronto armado com coronéis rivais e mesmo contra o poder público.

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