Oswaldo Lamartine: o sertão dos sertões
É o último texto sobre o sertão construído por alguns grandes escritores e intelectuais brasileiros.
Há escritores que se eternizam nas vitrines. E há os que sobrevivem, discretos, nas estantes da memória. Oswaldo Lamartine pertence ao segundo grupo, o dos que não pedem lugar no pódio, mas acabam virando alicerce de qualquer prédio que busque as origens de algo – no caso de Lamartine, o imenso edifício do sertão nordestino.
Pouco citado nos salões da crítica literária, a obra de Lamartine é daquelas que teimam em respirar pelas frestas da história, como o vento solto, ao qual se referia o meu tio Neném de Quinca, que atravessa a janela das casas-grandes, vinda dos campos e currais.
Potiguar de nascimento e sertanejo por convicção, Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007) não escreveu sobre o sertão apenas por literatura. Escreveu por testemunho. Não o sertão dos mapas, mas o das marcas de calo, da caatinga viva, do gado magro e do vaqueiro que sangra. Sua pena não foi guiada por estéticas da fome ou pela metafísica do pó, mas por um conhecimento encarnado, que começa nos olhos e termina na alma, no lajedo, como provavelmente ele diria.
Ao contrário de Euclides da Cunha, que via o sertão de binóculo, com um olhar de naturalista em missão de guerra, Lamartine o olha de dentro. Sim, o sertão ainda é campo de tensões, de misérias e batalhas contra a estiagem, mas não é só isso. Em O Sertão de Dentro, provavelmente o seu livro mais emblemático, ele revela a ossatura invisível da terra árida, a cultura que nela se tece. O que para Euclides da Cunha era cenário de barbárie, para Lamartine é engenharia existencial. O sertanejo, antes vítima da natureza ou fantoche de elites, aparece como sujeito histórico – hábil, resistente e, sobretudo, inventivo.
Câmara Cascudo – nosso maior intelectual e um quase vizinho intelectual do filho de Juvenal Lamartine – recolheu os mitos, os cantos, as fantasias do povo. Lamartine recolheu as ferramentas, as receitas, os modos de fazer. Cascudo sonhava com a alma do povo; Lamartine lhe via as mãos calejadas. Em livros como O Gado, o Sertão e o Homem, ele expõe minuciosamente os caminhos do boi, os atalhos da subsistência, os signos da adaptação. Em Casas de Fazenda, eterniza a arquitetura do poder rural, com seus alpendres silenciosos e seus quartinhos de Santa Luzia.

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Há também nele um vaivém quase poético. O que os outros escrevem como estudo, ele registra como quem pretende manter o último facho de memória. É o caso de Sertanistas e Sertões, um inventário de figuras e bravuras que não entraram para os compêndios oficiais. E em seu Vocabulário Sertanejo guarda palavras como quem guarda sementes, que seguem germinando.
Oswaldo Lamartine escreveu sem holofotes, mas com a precisão de quem sabe que o tempo não perdoa os descuidados. Caça, açudes, rapadura e sabugos foram temas por ele abordados, quase testamentos. Em cada página, ele amarra um laço entre o sertão de ontem e o que ainda resiste em silêncio, escondido atrás de uma cerca velha ou de uma panela de ferro.
Se Guimarães Rosa mitificou o sertão e Euclides Cunha o anatomizou, Oswaldo Lamartine o devolveu à sua gente. Sem adornos, sem lirismo messiânico, sem nostalgia de almanaque. Apenas com o rigor de quem sabe que o maior monumento da cultura sertaneja é o gesto de quem a vive. Escreveu com cheiro de gado e gosto de farinha e cuscuz.
Quem quiser entendê-lo deve, para começar, escutar o barulho de um curral ao amanhecer.