Coronel Cascudo e a revolta da serra de João do Vale
O Rio Grande do Norte já teve a sua Canudos e o responsável por dar fim a ela foi o coronel Francisco Justiniano de Oliveira Cascudo ou simplesmente coronel Cascudo, como está na rua localizada no centro de Natal.
Francisco Justiniano de Oliveira Cascudo, nascido em 1863 na Vila de Campo Grande (Triunfo/Augusto Severo/Campo Grande), foi oficial da polícia, coronel da guarda nacional, comerciante, ajudante de ordens do governador Ferreira Chaves e deputado estadual. Fundou um jornal diário – A Imprensa –, quando a cidade praticamente só tinha A República, noticioso da família Albuquerque Maranhão e, à época da fundação d’A Imprensa, veículo chapa-branca.
O seu estabelecimento comercial, O Profeta, um dos maiores e mais sortidos de Natal, localizava-se inicialmente na Travessa Medeiros (hoje Venezuela), depois mudando-se para a rua Chile e finalmente para a esquina da rua Doutor Barata com a praça Augusto Severo e a Travessa Aureliano, todos os endereços no bairro da Ribeira. Sua fama de comerciante foi superada pela do militar responsável por dispersar o ajuntamento fanático na serra de João do Vale.
Durante o século XIX e mesmo nas três primeiras décadas do século XX, a presença de beatos e conselheiros era comum no sertão, especialmente o nordestino. A miséria e a ausência de referências religiosas em áreas muito longínquas, contribuíam para o surgimento de líderes espirituais de cariz popular. Movimentos messiânicos e sebásticos eclodiam por toda parte, atraindo sertanejos pobres e analfabetos com a promessa de um salvador que os libertaria do flagelo da vida e do sofrimento humanos. Foi assim em muitos estados: em Pernambuco, nos anos de 1819 e 1836, na serra do Rodeador e na Pedra Bonita; na Bahia, entre 1893-97, em Canudos; no Ceará, já bem entrado no século XX, no Caldeirão. E mesmo distante do Nordeste, como ocorreu no Contestado, sul do Brasil. Todos tiveram desfecho violento e trágico, com derramamento de sangue e milhares de mortos.
No exaurido sertão nordestino, assolado por secas, praticamente sem assistência alguma de governos e da igreja e explorado por coronéis (latifundiários e donos da terra), o homem comum se via impelido a se insurgir contra o sistema. Dois caminhos eram possíveis: o cangaço ou o messianismo religioso. Para qualquer um deles, o sertanejo embrenhava-se caatinga adentro.
O Rio Grande do Norte também experimentou, apesar de o acontecimento ser pouquíssimo conhecido, em 1899, dois anos após o Exército ter trucidado o arraial de Canudos, seu ciclo de messianismo religioso, tendo como cenário a serra de João do Vale (área localizada entre os municípios de Jucurutu, Campo Grande, Triunfo Potiguar e Belém do Brejo do Cruz, na vizinha Paraíba), a 275 de Natal; o líder dessa epopeia foi o carismático Joaquim Ramalho do Nascimento (beato Joaquim Ramalho), então com pouco mais de 30 anos, que atraiu mais de mil devotos para a região. Assim se refere Luís da Câmara Cascudo à serra do João do Vale: “A Serra do Doutor, antes dos espigões paralelos e do ‘Alto da Lancinha’, distende um contraforte que vem se alongando através dos municípios de Currais Novos, Santana de Mattos e Flores. No Estreito, abruptamente cortada, a serra se ergue adiante, mássica e alta, com o nome de João do Valle. (…) A Serra do João do Vale foi antes conhecida por Pocaiciabo, pelos índios cariris; e Petetama, pelos índios pegas; depois era Cipilhada”.
A vocação religiosa de Joaquim Ramalho surgiu ainda na infância, influenciada por leituras como a Bíblia, a Missão Abreviada dos padres capuchinhos e a obra de Alan Kardec. Educado e alfabetizado por um antigo professor que morou na região e acólito do padre Manuel Bezerra Cavalcante, aos domingos descia a serra para assistir à missa na então Vila do Triunfo, atualmente Campo Grande. Cresceu como católico, mas simpatizante do kardecismo.
O padre da Vila de Triunfo morreu quando Joaquim Ramalho, já homem feito e casado, contava 32 anos, deixando a comunidade sem apoio espiritual. De personalidade arredia e séria, dedicado aos estudos da doutrina espírita, Joaquim Ramalho passava dias em meditações prolongadas, como se estivesse se preparando para uma missão divina, que se manifestou, quatro anos após a morte do padre Manuel Bezerra Cavalcante, por meio de revelações místicas quando o beato contemplava os finais de tarde no alto da serra; ele tinha crises de convulsivas, caía no chão e entrava em transe, quase sempre ao pôr do sol, cantando ladaínhas e proferindo sermões de forma eloquente. Câmara Cascudo descreve um desses momentos: “Numa tarde, na Serra, Joaquim Ramalho passeava no pátio da casa. Bruscamente parou nauseante, gorgulhando vômitos, com caretas e caiu de bruços pesadamente. A família acudiu. Veio apanhá-lo quando, ainda no solo, com os olhos abertos, face contraída, crispando numa agonia, o homem começou a cantar. Em volta, inconsciente, os presentes se detiveram descobertos, reverentes, atônitos, ouvindo no silêncio da tarde, aquele canto misterioso do doente. Era como uma ladainha monótona, fraca, pausada pelos resfôlegos ansiados, uma voz distante, incolor, assombrosa.” Passado o transe, Joaquim Ramalho dizia de nada lembrar, negando, conforme diz Câmara Cascudo, “que tivesse cantado”. Isso se repetiu por muitos dias, e no curso das epifanias celebrou missas na sua própria casa. As pessoas passaram a vê-lo como novo pregador daquela região. “A notícia alastrou-se como um relâmpago. De todas as tocaias da serra, homens e mulheres correram para ver o prodígio. Vieram presentes. Vieram adeptos”, relatou Câmara Cascudo, em artigo de 1924, denominado Os fanáticos da Serra de João do Vale, para depois arrematar: “Dia e noite a serra era sonora pelas litanias, responsos, novenas, terços, uma infinidade de serviços religiosos, cantados, rezados, em voz alta, com foguetão e alvoroço”.
Não há relatos de milagres, apenas a identificação dos fiéis e romeiros com a pregação do beato, pois a palavra de caridade e reconfortante era o mais importante para “aquela gente desvalida. Sua pregação magnetizava as massas. Dizia ele falar pela boca do Padre Manuel Bezerra”, expõe o escritor João Ramalho, em O Beato da Serra de João do Vale. Durante as celebrações, as pessoas se reuniam em volta de uma mesa de flores e uma esteira de palha com lençol branco onde Joaquim Ramalho proferia o sermão e dava conselhos aos devotos à sua volta. E o arraial crescia e desorganizava a vida nas fazendas e vilas, com trabalhadores e vaqueiros largando “o serviço para andar cantando, com uma vela na mão, atrás de Joaquim Ramalho, vestido num chambre branco de chita” e secundado por Sabino José de Oliveira, que começou como acólito e foi arrebanhando grande número de admiradores pelos seus transes espetaculares, conforme registra Câmara Cascudo.
O escritor João Ramalho registrou que em questão de meses havia um ajuntamento de romeiros. “Dos brejos da Paraíba, do Agreste e do Sertão deste Estado e do Ceará, afluíram à serra de João do Vale levas e levas de romeiros, para assistir as missões e os prodígios do santo homem. E até do interior de Pernambuco veio gente em romaria”. A essa altura a serra de João do Vale se tornou um santuário místico religioso, com ritos e liturgias constantes e com pessoas chegando de várias localidades, o que é confirmado pela revista Mobral, publicada em 1984: “As oferendas se multiplicavam. Gente vinha em peregrinação de léguas e léguas de distância. Eram tantos os presentes que nem o chiqueiro comportava mais. Barracas surgiram ao redor do templo doméstico”.
Câmara Cascudo relata que “Joaquim Ramalho era o senhor em trinta léguas derredor”, e sua pregação penetrava os sertões em santas missões populares, ganhando terreno, descendo “por toda zona do Paraú. Agora, em certos dias, com velas acesas, vagarosamente, a multidão descia para terços e novenários em lugarejos vizinhos, cantando benditos” e diferentemente do Conselheiro de Canudos, Joaquim Ramalho não contestava a República, nem tocava em política. Sua vocação era meramente devocional. Andava pelas estradas com seus seguidores visitando sertanejos pobres, rezando missas a céu aberto, batizando, dando a comunhão, confessando fiéis e concedendo extrema unção aos enfermos. Em suma, atuava como um sacerdote sem o aval da igreja, como registra Câmara Cascudo: “Cangaceiros afoitos, vaqueiros destemidos, ajoelhavam, rezando, batendo no peito, olhos baixos quando, estático e absorto em contemplações, Joaquim Ramalho passava, abençoando-os”. Suas ações, ainda que marcadamente religiosas, tiveram profundo impacto político e foram determinantes na vida de Francisco Cascudo, pois a quantidade de devotos era cada vez maior e os dias vão passando e “um arraial crescia enquanto a vida ia se desorganizando ao redor. Lavradores e vaqueiros largavam o serviço para andar cantando, com uma vela na mão, acompanhando Joaquim Ramalho”, descreve Câmara Cascudo em Os Fanáticos da Serra de João do Vale, gerando o receio de que tudo aquilo criasse distúrbios iguais aos de Canudos. Os rendimentos das lavouras caíram com a perda de mão-de-obra., porquanto lavradores deixaram as fazendas para seguir a vida religiosa no alto da serra e viver da própria plantação e, apesar de Joaquim Ramalho nunca ter empreendido uma organização social, tendo em vista o ajuntamento se formar espontânea e aleatoriamente, os chefes políticos locais “reclamaram para Natal. Contavam histórias horrorosas de devassidão, de roubo, de vadiagem. Dois anos antes Canudos dera o que fazer ao Governo Federal em dinheiro e sangue. A serra do João do Vale, com menos de trinta meses, anunciava um sucesso ainda maior. Os devotos informavam que no fim do ano, milhares de peregrinos apareceriam.” Por isso, os coronéis e latifundiários Tito Jácome, Luiz Florêncio e Vicente Veras, com fins de debelar o movimento, denunciaram Joaquim Ramalho ao então governador Ferreira Chaves como subversivo, como praticante de curandeirismo e de baixo espiritismo. Incontinenti, o governador determinou que o movimento fosse dissolvido e vigiado “o brazedo para não dar chama novamente”, tarefa para a qual foi indicado o “tenente do Batalhão de Segurança, sertanejo do município de Triunfo, conhecedor da terra e seus usos”, Francisco Cascudo.
Em agosto de 1899, com a ordem de prisão em mãos, o tenente Francisco Justino de Oliveira Cascudo (pai de Luís da Câmara Cascudo), chefe de policiamento do interior, e mais 22 soldados devassaram a serra de João do Vale, queimaram palhoças, derrubaram o altar, rasgaram a esteira e prenderam seguidores. Outros mais atentos conseguiram escapar do cerco policial ao se esconderem nos socavões da serra. Conforme Câmara Cascudo, Joaquim Ramalho foi avisado do que ocorria e “Sabino, sem perder a calma, lembrou a invulnerabilidade beata e a transformação das armas militares na água da fonte. Combinaram não uma reação, tendo centenas de homens esperando um gesto, mas a ida a uma fazenda próxima, ‘Pitombeira’, fazer uma ‘seção’. E foram dormir”. E assim fizeram, Joaquim Ramalho e seu assessor Sabino José e um grupo de devotos, entre eles a cega Justina, até serem cercados pela tropa, acrescida por paisanos, comandada por Francisco Cascudo. O beato entregou-se pacificamente. Ao se detido, diz Câmara Cascudo, Joaquim Ramalho teria dito: “Deus foi preso, quanto mais eu”. Alguns poucos tentaram reagir, entre eles Sabino, que “inopinadamente, com um berro cavernoso, deixou-se tombar, roncando, possuído pelo espírito. Sem sentidos, em êxtase, aí ficou Sabino, hospedando o missionário Brito. Rápido, o tenente desceu sobre o ‘cabra’ a espada, numa série de golpes prontos. Na mesma velocidade com que se prostara, Sabino voltou à verticalidade, informando, com a voz apresada e normal: – Pronto seu Tenente, o espírito já saiu. Voou à ponta da espada”.
O feito de Francisco Cascudo lhe valeu saudação proferida, em 1899, pelo ex-governador e então senador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, chefe do mais poderoso grupo político do estado e a quem o pai de Câmara Cascudo foi fortemente ligado, e abriu caminho para que ele se tornasse personalidade proeminente na vida de Natal, como próspero comerciante e dono de jornal. Mas aí é uma outra história.