A Espanha desafiou Portugal (2)

por Sérgio Trindade foi publicado em 02.dez.24

É comum os professores de História apresentarem as disputas por territórios entre Portugal e Espanha, no século XV, tomando como ponto de partida a primeira viagem de Cristóvão Colombo e os dois tratados de limites daí resultantes: a Bulla Intercoetera (1493) e o de Tordesilhas (1494).

No entanto a rivalidade e a disputa são bem anteriores, como registra o historiador português Jorge Couto no seu livro A construção do Brasil.

Segundo ele, entre o final dos anos 1480 e início dos anos 1490, as questões de limites entre Portugal e Espanha estavam definidas pelo Tratado de Alcáçovas (1479), assinado por Portugal e Castela-Aragão e confirmado pelos reis Fernando e Isabel, em 1480, o qual repartia os territórios extra-peninsulares e definia as áreas de influência no oceano Atlântico. Pelo tratado acima citado o estado português “admitia o senhorio de Castela nas Canárias e no trecho do litoral africano fronteiriço àquelas ilhas; por seu turno, Castela-Aragão reconheciam a soberania de Portugal sobre o reino de Fez (Marrocos), os arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde e São Tomé, bem como sobre todas as ilhas e terras descobertas ou por descobrir, com o respectivo comércio e pescarias, a partir de um paralelo traçado a sul das Canárias – que passava aproximadamente pela latitude do cabo Bojador (27º N) – incluindo as ‘terras, tratos e resgates da Guiné com as suas minas de ouro’.”

A preocupação de Portugal era primordialmente com a rota e o domínio das Índias. Daí a tremenda irritação do rei de Portugal com as notícias sobre os êxitos espanhóis, tendo em vista que na primeira viagem que fizera, o genovês a serviço da coroa espanhola, Cristóvão Colombo, chegara às Bahamas e às Antilhas, e divulgou ter aportado em arquipélagos adjacentes ao continente asiático, mais precisamente a um pedaço de Cipango (Japão), pondo em risco, de acordo com Couto, “o equilíbrio laboriosamente alcançado entre Portugal e Castela na partilha de áreas de influência, como atesta a audiência de 9 de março de 1493 entre o rei português, D. João II, e o Almirante do Mar Oceano,  Cristóvão Colombo, quando aquele comunica a este que as novas terras estavam localizadas, conforme definia o Tratado de Alcáçovas, em área portuguesa.

A situação quase se transformou em um conflito armado, com a solução finalmente estabelecendo-se na esfera diplomática. Não sem alguma complicação, visto que a Espanha conseguira convencer o papa Alexandre VI – de ascendência espanhola – a estabelecer um documento estipulando a quem cabiam as regiões descobertas e a descobrir. Tal documento, denominado de Bulla Intercoetera determinava que as terras existentes a oeste de um limite traçado a 100 léguas do arquipélago de Cabo Verde pertenceriam à Espanha e as terras situadas a leste deste traçado seriam de Portugal.

Segundo Vianna, no primeiro volume de sua História do Brasil, como o rei Fernando, de Aragão, casado com Isabel, de Castela e Leão, não mantinha boas relações com os Papas Sisto IV e Inocêncio VIII, atuou no sentido de garantir que o novo Papa a ser escolhido lhe fosse próximo, objetivo alcançado com a “eleição, em 1492, do Cardeal aragonês Rodrigo Bórgia, o célebre Alexandre VI”, artífice da bula acima citada e que foi assinada em 3 de maio de 1493.

Como os reis Fernando e Isabel já tinham pleno conhecimento, desde que Colombo retornara de sua primeira viagem, “dos títulos de legitimidade e direitos de que podia dispor o Rei de Portugal, apressaram-se a promover a sua revogação, valendo-se do prestígio de que gozavam na Cúria Romana”. Para atingir o intento, os reis católicos valeram-se dos serviços do Cardeal Carvajal, o qual arrancou do Papa Alexandre VI a bula que determinava que “lhes foram concedidas, como a seus herdeiros e sucessores, ‘todas e cada uma das sobreditas terras e ilhas desconhecidas e até hoje por vossos emissários achadas e a serem achadas para o futuro, as quais não estejam constituídas sob o atual domínio temporal de nenhuns Príncipes Cristãos’”, tem em vista que de todas as obras que alguém poderia fazer a que mais agradaria “‘à Divina Majestade é que a religião cristã seja exaltada e divulgada em todos os países, e as nações bárbaras sejam subjugadas e convertidas à Fé Católica’.”

Tal documento distinguia as terras portuguesas e espanholas, “outorgando aos Reis de Castela, Leão e Aragão, ‘todas (essas) ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio Dia’”, o que ensejou o traçado de uma linha imaginária que seguia do pólo Ártico ao Antártico que passaria a cem léguas a oeste dos Açores e de Cabo Verde. Terras a oeste do meridiano estariam em área espanhola; a leste, de Portugal.

O acertado por esta bula papal foi reafirmado pela bula Eximia devotionis, de 3 de maio mas só editada em julho, por meio da qual foram estendidos aos reis espanhóis os mesmos privilégios de que gozava a Coroa portuguesa, medida que só fez acirrar ainda mais a insatisfação lusitana, pois demonstrava claramente a parcialidade do Papado, que mesmo não tendo o objetivo de premiar a nascente Espanha pela descoberta do continente americano, ainda não reconhecido como um novo continente, transferia a ela (Espanha) concessões que fizera antes a Portugal.

A exigência da Coroa portuguesa em alargar o traçado da Bula Intercoetera estava profundamente vinculada à necessidade de reafirmar o compromisso de que a Espanha não faria uso da rota portuguesa para as Índias. Os espanhóis concordaram e firmaram acordo em Tordesilhas, em 1494. Por este novo acordo, um bom pedaço do Brasil, ainda por ser descoberto “oficialmente” por Portugal já lhe pertencia.

 

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