Policiais, professores e a falsa polêmica da prova do Marista
Uma polêmica colocou, há duas semanas, policiais e professores em lados opostos.
O motivo foi uma charge usada numa prova do ensino fundamental aplicada no colégio Marista de Natal e na qual um policial apareceu com cara de porco.
Notas foram emitidas por entidades ligadas às polícias. O colégio também emitiu a sua, insípida e inodora.
Críticas pipocaram pró e contra a atividade avaliativa aplicada pelo colégio católico.
Entre os contrários, o argumento central era o de que a prova pretendeu induzir a meninada a assumir postura crítica e negativa em relação à instituição policial como um todo, razão pela qual houve vigorosa reação de entidades que se consideraram agredidas. Os mais afoitos indicavam estar mais do que na hora de tratar o tema com a seriedade que ele merece, sem passionalidades nefastas e ativismos fanatizados.
Houve aqueles que acham ter havido exagero na polêmica. Dizem que os temas da violência policial, do racismo e do desmatamento, todos tratados em provas do Colégio Marista, mostram os fatos do mundo real, aquilo que está ocorrendo mesmo no Brasil, sem exageros e sem maquiagem.
Para referendar a tese de que houve exagero nas manifestações, dados foram sacados apontando matérias jornalísticas e estudos que demonstram claramente os elevados índices de violência policial e que os principais alvo são os negros (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/3/violencia-por-raca-e-genero) (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020), que houve crescimento desmedido do desmatamento durante o governo de Jair Bolsonaro (https://veja.abril.com.br/brasil/desmatamento-na-amazonia-aumenta-853-em-2019-aponta-inpe/) (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/07/10/interna-brasil,871076/desmatamento-na-amazonia-em-disparada-em-11-meses-aumento-de-64.shtml) e que, por isso, existe boicote orquestrado contra produtos brasileiros, e por aí vai. Paulo Coelho, escritos brasileiro que mora há tempo na Suíça, chegou a propor, no Twitter, o boicote a produtos brasileiros (https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/09/14/paulo-coelho-mira-em-bolsonaro-e-acerta-o-brasil.htm).
A taxa de homicídios cresce sem parar há três décadas. Em 1980, 11,69 por 100 mil habitantes morriam assassinadas; em 2017, eram 31,59 por 100 mil (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20). Os negros são as maiores vítimas de violência nos últimos dez anos, no Brasil (https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665).
Mas, e os policiais? Eles também são alvos da violência?
Comecemos por policiais que morrem nas folgas, conforme registra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em seu anuário, o FBSP diz que em 2017 morreram 371 policiais assassinados no Brasil, sendo 290 mortos durante a folga. (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/01/17/policia-armamento-mortes-folga-violencia.htm). São mortes pouco repercutidas na mídia e pouco debatidas nas escolas brasileiras.
A polícia brasileira é cinco vezes mais letal do que a sua congênere do Estados Unidos (https://super.abril.com.br/sociedade/letalidade-policial-no-brasil-e-cinco-vezes-maior-que-nos-eua/). A pesquisadora Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP), levantou dados sobre a letalidade das polícias dos EUA e outros três países, entre os quais o Brasil. De cada 100 homicídios sem envolvimento da polícia nos EUA, policiais americanos matavam 2,9 pessoas, enquanto no Brasil, são 7,8 pessoas mortas pela polícia (Dados de 2016). O Brasil teve pelo menos 5.804 pessoas mortas por policiais em 2019 e 159 policiais morreram em ação. No ano anterior, 2018, foram 5.716 mortes (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/05/01/O-aumento-da-viol%C3%AAncia-policial.-E-como-ela-%C3%A9-vista-pelos-brasileiros).
E nós professores, o que mostramos aos nossos alunos sobre os péssimos índices de educação? Ou não temos responsabilidade alguma no índice de letalidade da alma dos jovens que frequentam as nossas escolas?
Ano a ano o Brasil ocupa a rabeira no Pisa (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50646695) (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50606790) (https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/12/03/brasil-cai-em-ranking-mundial-de-educacao-em-matematica-e-ciencias-e-fica-estagnado-em-leitura.ghtml) (https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/12/03/pisa-brasil-fica-entre-piores-mas-a-frente-da-argentina-veja-ranking.htm) e professores são frequentemente retratados como doutrinadores que pretendem incutir na cabeça dos jovens o amor pela revolução comunista. Grande parte, provavelmente a maioria esmagadora da categoria, refuta o rótulo e se sente ofendida quando o assunto vem à tona. Porém, não sente vergonha alguma em rotular outras categorias.
Já ouvi e li colegas defendendo a ação de blacks-blocs para plateias de estudantes de ensino médio, como se os infantes da revolução anarquista que andam mascarados estivessem conduzindo a sociedade, por meio da violência, ao paraíso terreal. Não saberia dizer quantos defendem tal aberração, mas sei que existem. Como não saberia dizer quantos, mas sei que há policiais que defendem justiçamento.
O sistema educacional brasileiro, professores à frente, precisa se movimentar para que o ensino leve ao conhecimento e à reflexão. Existem bons e maus profissionais na polícia e existem bons e maus profissionais na docência. Elaborar prova retratando policiais como porcos não é o melhor caminho para denunciar maus policiais e para mostrar, de forma adequada, que o trabalho das polícias brasileiras precisa melhorar. Como o caminho para melhorar a educação do Brasil não é retratar, de forma genérica, o professor como um doutrinador.
Existem policiais que mancham a instituição policial, agindo como justiceiros sem freio; existem professores que usam a sala de aula como espaços para doutrinação. Não é possível negar as duas realidades. Reconhecê-las é o passo inicial para superá-las.
Quanto à prova do colégio Marista, repito o que disse a quem me perguntou: foi apenas mal elaborada ou pode ter sido algo pior.
Como não tenho elementos para confirmar a segunda hipótese, fico com a primeira.