Calemo-nos!

por Sérgio Trindade foi publicado em 03.jan.21

Assisti, semana passada, à série El Rey, que trata da trajetória do rei Juan Carlos, entre os anos 1948 e 1975 (a série até ultrapassa o período, mostrando os caminhos iniciais, na segunda metade da década de 1970, que levaram à democratização da Espanha e o falecimento do pai de Juan Carlos, em 1993) e me veio a lembrança da polêmica, ocorrida em 2007, entre ele e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

O incidente entre o rei espanhol e Chávez ocorreu depois que o presidente venezuelano chamou o ex-primeiro-ministro espanhol Jose María Aznar de fascista, porque durante a sua gestão, Aznar foi um aliado próximo dos Estados Unidos. Na ocasião, o então primeiro-ministro da Espanha, Jose Luís Rodriguez Zapatero, defendeu Aznar e disse que ele havia sido eleito “democraticamente pelo povo e foi um representante legítimo do povo espanhol”. Como Chávez, mesmo com o microfone desligado, tentou interromper Zapatero, o rei Juan Carlos ordenou-lhe, furioso: “Por que o senhor não cala a boca?” (https://videos.bol.uol.com.br/video/rei-juan-da-espanha-manda-hugo-chavez-se-calar-040266D0B91346).

O fato acima é apenas um introito para que possa discorrer sobre o hábito, aqui no Brasil, de dizer ao mundo, o que deveria ser feito para todos vivêssemos numa espécie de paraíso terrestres. Isso ocorre notadamente em nossas relações com o mundo desenvolvido, com os nossos líderes sugerindo como os líderes mundiais devem fazer para tornar a vida dos países que governam melhor e, também, para melhorar a situação dos países pobres.

A doença acometeu praticamente todas as nossas lideranças políticas de peso – mesmo que quase não as tenhamos e acomete o cidadão que estudou um pouquinho mais e se apresenta quase como especialista em tudo, principalmente em política internacional e em economia política. E isso num país que não é bem um exemplo de como deve ser conduzida a política, da econômica à educacional, passando pela gestão da saúde e outras mais.

Quando é o assunto é o Tio Sam, então, existem especialistas de todos os tipos. Até quem nunca leu nada sobre os Estados Unidos tem um recado a dar aos governantes de lá e desanda a explicar o que ocorre entre eles e os seus aliados e inimigos. Vamos refrescar a memória?

No final dos seus oito anos à frente dos destinos do Brasil, Lula, com uma popularidade de quase 90%, resolveu nos presentear e ao mundo com uma verdadeira aula oca sobre o oriente médio, politicamente uma das regiões mais instáveis do planeta: “Quem deveria estar à frente do processo (de paz) é a ONU, não os Estados Unidos – que são um dos responsáveis pela crise. Por isso o Brasil reivindica mudanças na ONU, para que ela seja representativa de 2010, e não de 1948, quando foi criada, porque a geopolítica do mundo mudou”, disse o nosso então presidente.

Esqueçamos o erro básico no raciocínio tosco. O que foi dito por Lula é, sob qualquer ângulo, uma bobagem sem limites. Não é segredo para ninguém que os Estados Unidos da América defendem (como faz ou deveria fazer qualquer Estado nacional) os seus interesses com unhas e dentes. No entanto, acusá-los de responsáveis pelos conflitos que ocorrem no Oriente Médio demonstra ignorância, no mínimo.

Lula demonstrou que a ignorância típica do brasileiro médio e mesmo de alguns estudados sobre o papel exercido pelos Estados Unidos durante os anos da guerra fria e após o colapso da União Soviética.  

No outro extremo, o governo do presidente Bolsonaro constantemente mete “os pés pelas mãos de maneira desarrazoada e contraproducente. Eduardo Bolsonaro fala como deputado, como filho do presidente e como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. É de uma imensa irresponsabilidade, agora ameaçando causar danos graves aos interesses do Brasil com a China”, alertou, em novembro Roberto Abdenur, diplomata aposentado e que atuou como embaixador na China (1989 a 1993) e nos Estados Unidos (2004 a 2006), após a fala destemperada de filho do presidente nas redes sociais (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55081541), atribuindo à China a culpa pela crise mundial causada pelo coronavírus.

Não entro, neste texto, no mérito da responsabilidade da China pela propagação do coronavírus. O meu intento é só demonstrar como a ignorância é combustível disponível em quadrantes ideológicos diversos e como poderia ser combatida se as Escolas se dispusessem a fazer aquilo para que existem: produzir e difundir conhecimento.

Lula e sua turma e Bolsonaro e sua turma não estão sozinhos na empreitada. Nem ela é coisa nascida nos dias atuais (voltarei a isso em texto posterior), mas o ambiente tóxico dos últimos dez anos tem contribuído para a sua permanência.

Nas universidades americanas não é incomum encontrar centros de estudos sobre América Latina. A quantidade de brasilianistas norte-americanos que já li é relativamente grande e todos dedicaram-se ou dedicam-se à história do Brasil por décadas. Quando falam ou escrevem sobre o nosso país, fazem-no com conhecimento de causa.

Tive a curiosidade de olhar, antes de escrever este texto, o site de universidades brasileiras para ver se havia alguma ação semelhante. Nada vi. O máximo que encontrei foi a inclusão de componentes curriculares em cursos que abordam elementos da história e da cultura norte-americana. Como minha pesquisa foi rápida, muita coisa pode ter passado sem que eu tenha visto.

Temos algo a ensinar ao mundo desenvolvido, é claro. Mas temos muito mais a aprender. Se quisermos ser conselheiros de alguém, devemos nos debruçar, com seriedade, sobre a história do aconselhado.

Para começar, faríamos mais e melhor se conhecêssemos a nossa própria história e situação, afinal um povo que vive num país com os índices de criminalidade, de analfabetismo, de corrupção e de injustiça social que nós temos, deveria se meter menos com os problemas dos outros, procurar menos culpados fora e trabalhar com afinco e silenciosamente para tirar o pé do lodaçal no qual vive e se meter menos com os problemas dos outros.

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