Ciro Gomes: do coronelismo ao coronel

por Sérgio Trindade foi publicado em 19.jan.22

Antes de dizer qualquer outra coisa, adianto: talvez vote em Ciro Gomes, caso os candidatos no próximo pleito presidencial sejam os que estão, até o momento, apresentados. Isso, porém, não me torna um eleitor dócil e tampouco cego aos pecados do cearense de Pindamonhagada (SP).

Ciro Gomes, o Cirão da Massa, era um comportado coronel que fazia carreira política à sombra de Tasso Jereissati, considerado, não com inteira justiça, o responsável por um grande projeto de mudança nas estruturas econômicas e sociais no Ceará.

Digo que não há completa justiça em assim se referir a Tasso porque algumas décadas antes dele assumir o governo estadual, o coronel Virgílio Távora (governou o Ceará em dois períodos, 1963-1966 e 1979-1982) implementou, na década de 1960, o Plano de Metas Governamentais (PLAMEG), à época considerado um avançado planejamento estratégico, cujas preceitos possuíam perfil modernizador. Tais diretrizes, ressalto, foram também seguidas pelo governo Tasso Jereissati, mesmo que o atual líder tucano tenha sido, desde sempre, um crítico ferrenho de Virgílio Távora e de seus aliados (https://mais.opovo.com.br/jornal/reportagem/2019/09/28/a-trajetoria-do-politico-que-transformou-o-ceara.html).

Compor o texto

Virgílio Távora e João Goulart

Virgílio Távora é comumente associado a práticas políticas arcaicas e forma com Adauto Bezerra e César Cals a trinca coronelista responsável pelo atraso do estado, ainda que os seus discursos apontassem, desde o início da sua carreira política, na década de 1940, no seu bojo a defesa da modernização do Ceará, tenha montado, na década de 1960, como dito acima, o PLAMEG e tenha, para tal, se associado à uma tecnoburocracia, introduzindo técnicos competentes para comandar as secretarias consideradas estratégicas na lógica do seu plano de governo, muitos advindos de instituições criadas em período recente, como Banco do Nordeste do Brasil (BNB), a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste  (SUDENE).

A postura de Virgílio Távora e de seus aliados Adauto Bezerra e César Cals não se enquadrava, é preciso registrar, no figurino do coronel tradicional (o coronel de enxada) pois eles “não eram latifundiários, mas banqueiros e originários de setores da classe média urbana. Sob o ponto de vista econômico, eram de matriz desenvolvimentista”, afirma diz a socióloga e professora Linda Gondim, autora do livro Uma Nova História do Ceará, como o eram praticamente todas as lideranças políticas consideradas inovadoras entre os anos 1940-60.

Nas eleições de 1986, Tasso Jereissati, apoiado pelo governador Gonzaga Mota e candidato da coligação PMDB-PC do B, venceu a trinca coronelista que lançara Adauto Bezerra (PFL-PDS) como postulante dos grupos oposicionistas. A maioria de Tasso foi esmagadora e inquestionável (450 mil votos) e sua posse, em março de 1987, deu início a uma nova composição de forças dentro da máquina governamental, sepultando definitivamente a liderança dos três coronéis, que tiveram suas imagens associados a políticas clientelistas e retrógrados.

Tasso Jereissati no comício em Caucaia Foto: Divulgação, em 13/09/1986

A competitividade na política local, comum quando os coronéis e suas agremiações partidárias se revezavam no poder, praticamente desapareceu na era que Tasso Jereissati e seu grupo dominaram a máquina governamental no Ceará, vencendo permanentemente eleições governamentais, invariavelmente com ampla base de apoio parlamentar, em nível estadual e federal, consolidando o poderio político do grupo e minando, por muito tempo, a capacidade de influência de outras lideranças. O momento coincidiu com o contexto de redemocratização e consolidação da nova república.

A liderança de Ciro Gomes emergiu nessa conjuntura, encarnando de forma clássica como “herdeiro político (…) a reciclagem do poder oligárquico” e colaborando “na consolidação de uma estrutura de poder que, mesmo identificada por muitos como responsável pelo rompimento com o coronelismo, conserva até hoje características do modelo que derrotou”  (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2804200223.htm).

Em Uma Nova História do Ceará, Linda Gondim diz que “Ciro e Tasso não são coronéis” e surgiram “como uma novidade porque a estrutura coronelista se baseava na troca de favores, no clientelismo, e eles não fazem isso. Mas ficou a oligarquia, o controle grande da política até hoje”, tese de certa forma já exposta pelo cientista político Josênio Parente, também professor da Universidade Federal do Ceará e autor de um livro essencial para a compreensão da transição trinca coronelista-Tasso Jereissati e aliados, A Fé e a Razão na Política.

Para ele, Tasso e Ciro “puderam se antecipar ao governo de Fernando Henrique Cardoso no Ceará porque o Banco Mundial formou no Estado quadros técnicos que permitiram a criação de uma racionalidade empresarial. E o Ceará foi escolhido porque lá havia uma traquilidade institucional que não existia em outros lugares do Nordeste”.

Em meados de 1994, convidado pelo presidente Itamar Franco para comandar, como ministro da fazenda, o Plano Real, projeto econômico que nasceu nas pranchetas liberais de economistas da PUC/RJ, todos nomeados por Fernando Henrique Cardoso, já catapultado à candidatura presidencial devido ao sucesso do nascente engenho econômico, Ciro Gomes amuou-se por ser tratado apenas como executor de medidas, como se fosse um quadro menor do PSDB, das quais não tinha muita compreensão.

A partir daí, tornou-se um “reformador” radical. Mas como todo mundo que briga e quer construir um movimento em torno de uma personalidade carismática, ele precisa de pessoas que acreditem que estão diante de uma revelação nascida de estudos exaustivos e de grande experiência pessoal. Por isso, apresenta-se como uma figura singular, com amplo domínio dos mais variados e complexos temas. Para tal, cita estatísticas descontextualizadas, quando não inexistentes, posa de intelectual ponderado, mas explode caninanamente quando combatido, revelando sua natureza do coronelista.

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