De 1984 (ou de como em 2021 a semente do totalitarismo está bem plantada)

por Sérgio Trindade foi publicado em 24.dez.21

“Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas.” Assim começa um dos romances mais citados do século XX – 1984, de George Orwell, o qual, nos dias que seguem, deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas, para mostrar como o totalitarismo está sempre à espreita, por vezes travestido até de intenções pretensamente nobres e virtuosas. Só a menção ao título desencadeia uma avalanche de associações mentais: comunismo, polícia política, nazifascimo, tortura…

O livro ganhou fama por tratar de forma ficcional de uma das grandes mazelas contemporâneas – o totalitarismo, e, junto com A revolução dos bichos, elevou o nome do autor à categoria de adjetivo.

Nascido Eric Arthur Blair e adotando o nome artístico George Orwell, ele viu o termo orwelliano tornar-se sinônimo expressivo e terrificante de um vão do totalitarismo. Os seus textos o elevaram ao patamar de um dos mais vivazes e lúcidos intérpretes políticos do século XX, que cedo ficou desencantado com utopias políticas, incluindo a soviética, metafórica e impiedosamente descrita  n’A revolução dos bichos, de 1945.

Reafirmando sua autonomia intelectual, disse certa vez que a “aceitação de qualquer disciplina política parece ser incompatível com a integridade literária”, traço de sua postura invariavelmente presente nos seus escritos, inclusive em 1984, finalizado em 1948, publicado em 1949, traduzido em 65 países e que virou minissérie, filmes, inspirou quadrinhos, mangás e uma ópera e ganhou renovados holofotes no final do século passado, quando a produtora holandesa Endemol batizou seu reality show de Big Brother, personagem mais sinistro e polemizado da obra.

A origem do título 1984 é controversa. Orwell supostamente queria que o livro se chamasse O Último Homem da Europa, mas seu editor Frederick Warburg o convenceu a usar algo mais comercial. Como o texto foi concluído em 1948, o escritor inverteu os dois dígitos finais, como forma de registrar e alertar que a distopia descrita não era uma ameaça assim tão distante.

O enredo transcorre na fictícia Oceania e tudo gira em torno do Grande Irmão. “Quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis”, o Big Brother é o líder máximo e incontestável, o neo-führer ou o neo-camarada-mor que assumiu o poder depois de um conflito global semelhante à segunda guerra.

A nova conflagração mundial eliminou as nações e criou três grandes estados transcontinentais totalitários: Oceania, Eurásia e Lestasia .

Oceania reúne a ex-Inglaterra, as ex-Américas, ex-Austrália e Nova Zelândia e parte da África, constituindo-se num mundo sombrio e opressivo, com cartazes da autoridade suprema espalhados pelas ruas, e está numa guerra feroz contra a Eurásia. Lá todos odeiam a inimiga Eurásia e diariamente a cólera e o rancor são ainda mais açulados em programas como Dois minutos de ódio, no qual imagens do exército eurasiano e de seu líder, Goldestein, são mostradas para que a população contra ele esbravejasse, canalizasse sua raiva e aprendesse a odiar instintivamente o inimigo.

Um slogan onipresente é: “O Grande Irmão está de olho em você”. E está mesmo, afinal as teletelas, monitores de televisão presentes nos lugares públicos e nos recantos mais íntimos de todas as residências, espionam, monitoram e gravam as pessoas. Todos têm a intimidade devassada e corrompida.

Winston Smith, funcionário do Departamento de Documentação do Ministério da Verdade, um dos quatro ministérios que governam Oceania, e protagonista da obra, trabalha com a falsificação de registros históricos, moldando o passado à luz dos interesses totalitários do regime. Impossível não relacionar tal passagem ao que ocorreu na Alemanha de Hitler, onde o ministério da propaganda, dirigido por Goebbels, desempenhava a função de produzir e propagar mentiras com ares de verdade, ou na União Soviética de Stálin, onde registros fotográficos eram manipulados e falsificados para atender ao camarada-mor, obedecendo à máxima de que “Quem controla o passado controla o presente”. Assim, pessoas mortas – vaporizadas – eram apagadas de jornais antigos, como se nunca tivessem existido. Previsões não cumpridas e metas governamentais não alcançadas eram adulteradas nos meios de comunicação do passado, para que o Partido nunca perdesse sua credibilidade.

A opressão física e mental era pavorosa, com a polícia do pensamento atuando desenvoltamente como patrulha do pensamento, igual ao que fazem hoje as milícias digitais, cancelando todo e qualquer um que ouse fugir de consensos artificialmente fabricados em bolhas.

Nesse cenário de submissão no qual as leis praticamente inexistem, substituídas pelas inúmeras regras determinadas por um Partido formado por degenerados, ninguém jamais viu o Grande Irmão em pessoa, um dos mais brilhantes estalos do autor, pois indica que a tirania mais amedrontadora e autoritária pode ser aquela exercida por um líder abstrato, que decide conforme a conveniência de gente pervertida. O tirano envolto no manto da abstração pode nem ser uma pessoa, como constatamos hoje em dia, mas uma ideia, a centelha purificadora dos costumes.

Em meio ao trabalho quase mecânico, repetitivo e bovino que executa, Winston Smith desfruta do único lugar onde é livre para ser ele mesmo, o pouco espaço de sua caixa craniana. Ele não pode deixar que outros percebam sua insatisfação e suas discordâncias do sistema, pois seria denunciado à polícia do pensamento e, certamente, executado. Afinal, qualquer expressão de desagrado era intolerável. Por perceber sua liberdade tolhida, Winston Smith odeia o sistema, que claramente falseia a realidade, mas evita desafiá-lo. Ele deseja ardentemente entender o passado que ele mesmo ajuda a adulterar. Sua postura, porém, muda quando, pisando em campo minado, apaixona-se por Júlia, funcionária do Departamento de Ficção. O sentimento transgressor o impulsiona em direção à rebelião e ao combate, que ele reconhece não será fácil.

Nesse ambiente sufocante, a rotina é padronizada. O vocabulário é reduzido ao máximo; o idioma é substituído pela novilíngua, que, a cada nova edição do dicionário, torna o vocabulário mais curto, com uma mesma palavra sendo usada para expressar diversas ideias paradoxais, bem de acordo com o duplipensamento. A interpretação dúbia serviria para confundir as pessoas, desacostumá-las a pensar e a tentar serem coerentes, resultando num raciocínio cíclico, como o expresso na máxima “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.

George Orwell foi sagaz ao observar para onde caminhava a humanidade, percebendo que o medo é um combustível perigoso, pois quanto maior ele é, maior será a possibilidade de servir como instrumento de controle, sem que as pessoas percebam.

O Big Brother era, ao mesmo tempo, fonte do medo e fonte da provisão de todos. Logo, não seria possível odiá-lo quando ele pretensamente só queria o bem do povo. E assim, todos vão lhe entregando mais e mais poder e, portanto, o controle de suas vidas. Por medo do sistema, todos a ele vão bovinamente se dobrando e, numa relação doentia, amando-o.

posts relacionados
Logo do blog 'a história em detalhes'
por Sérgio Trindade
logo da agencia web escolar