Golpe e golpes

por Sérgio Trindade foi publicado em 03.jun.24

O ex-Presidente Jair Bolsonaro é frequentemente acusado de ser golpista, de ter planejado um golpe, de ter se associado a golpistas, etc, etc e etc.

Não pretendo discutir o que já está consolidado na imprensa. Talvez Bolsonaro tenha flertado efetivamente com um autogolpe, não exatamente nos moldes propostos e executado, em 1937, por Getúlio Vargas, mas seguindo proximamente à trilha aberta pelo gaúcho de São Borja, mas o que me espanta é como o discurso em defesa da democracia se consolidou até mesmo entre aqueles que, há pouco tempo, maldizia a democracia burguesa em que vivíamos.

Bolsonaro é golpista e o Presidente Lula é um democrata, pois, sem dúvida, todas as vezes que subiu a rampa do Palácio do Planalto, o pernambucano de Garanhuns o fez depois de vencer, nas urnas, os seus oponentes – José Serra (2002), Geraldo Alckmin (2006) e Jair Bolsonaro (2022).

Antes de seguir adiante, adianto, para ser fiel à História, que mesmo convivendo internamente com um sem-número de tendências marxistas, o Partidos dos Trabalhadores (PT) nunca se definiu como marxista. O PT sempre se autodenominou socialista e democrático, com pretensões de superar os problemas resultantes das experiências históricas da social-democracia e do socialismo real.

E ainda que a influência do marxismo tenha sido uma constante no PT nos primeiros dez anos de sua existência, isso começou a mudar a partir dos anos 1990, com a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética. Alguns pensadores do campo socialista, no entanto, seguem firmes na preferência do partido, caso do italiano Antonio Gramsci, mesmo sem ser diretamente citado, cujos conceitos se fazem presentes em documentos oficiais do PT.

Para Gramsci, o partido revolucionário é o moderno príncipe, referência ao famoso livro de outro italiano, Nicolau Maquiavel. Para Gramsci o príncipe-condottiere configura o Estado unificado, semente da civilização burguesa, enquanto o partido-príncipe é artífice da hegemonia proletária. A proposição está em Cadernos do Cárcere e em Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, obras importantes do italiano que foi deputado e dirigente do Partido Comunista Italiano.

Profundo investigador das superestruturas com ênfase no importante papel da cultura e da política para construção de um projeto social hegemônico, Gramsci, dado o caráter revolucionário de arguto observador e ativo participante da realidade social, econômica e política, destaca a existência de três elementos cruciais da política, a saber, a “existência real de governados e governantes, dirigentes e dirigidos”; o partido político como “o modo mais adequado para aperfeiçoar os dirigentes e a capacidade de direção”; e o espírito estatal.

Em Maquiavel, a Política e o Estado Moderno é registrado o partido político da modernidade como encarnação do Príncipe maquiaveliano, e o Príncipe atua de forma a se manter no poder em condições de normalidade e, ainda, para criar uma nova governabilidade. São dois os partidos, os totalitários cujas “funções não são políticas, mas só técnicas, de propaganda, de polícia, de influência moral e cultural – função política indireta”, e os tradicionais, de caráter educativo. Ambos assumem duas formas básicas, a saber, o partido da elite e o partido de massas. Este último tem a função política de conquista, sustentada numa fidelidade genérica, tornando-se, de certa forma, massa de manobra.

Os partidos existirão apenas se houver o encontro de três elementos, a saber, “uma massa de homens comuns”, sem qualquer potencial criativo e cuja participação dar-se-á pela disciplina e pela fidelidade, o de “elemento de coesão”, porquanto disciplinador e centralizado nacionalmente e, por último, “um elemento médio” para pôr os outros dois em contato, exercendo, portanto, a responsabilidade por articulá-los.

Quando ocorre uma crise de hegemonia da classe dirigente e do Estado no seu conjunto e dado o potencial mais dinâmico e célere de recomposição pelos partidos da classe dirigente, pode surgir o fenômeno do cesarismo ou bonapartismo, quando o poder é transferido para uma “personalidade heroica” de caráter militar ou carismático, fenômeno que pode ser, conforme Gramsci, reacionário ou progressista, impedindo o funcionamento da democracia. É a situação vivenciada no Brasil com o choque entre Bolsonaro e Lula, com os despojos do regime democrático sendo disputados pelos dois líderes.

O autor italiano complementa dizendo ser possível a ocorrência de soluções bonapartistas mesmo que não haja um grande herói. Basta que os militares se apresentem como uma peça substancial e decisiva para o seu estabelecimento. O golpe de 1937 desfechado por Vargas é exemplo típico do primeiro caso; o de 1964, do segundo.

A estratégia do PT nunca foi dar um golpe de Estado cesarista/bonapartista, mas conquistar a hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido, cuja função seria de Partido Educador, conforme é possível compreender no texto O “Moderno Príncipe” gramsciano e o PT na década de 80, de Maria Socorro Ramos Militão (https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/download/11/1991/3402?inline=1).

N’O Estado Novo do PT, Luiz Werneck Vianna aponta que se for possível “crer nos indicadores dos dois períodos presidenciais de Fernando Henrique, mas, sobretudo, a partir do mandato de Lula, o capitalismo brasileiro encontrou um caminho de expansão e de intensificação da sua experiência, (…) conduzido por um projeto pluriclassista e com a definida intenção de favorecer uma reconciliação política com a história do país, contrariamente à administração anterior, mais homogênea em sua composição de interesses”, pois Lula guindou “a Ministérios estratégicos, as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira – a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive os cúlaques que começaram sua história na pequena e média propriedades, e que, com a cultura da soja, atingiram o reino do grande capital –, lado a lado com o sindicalismo das grandes centrais sindicais e com a representação dos intelectuais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)”, sem contar “a revalorização da questão nacional, do Estado como agente indutor do desenvolvimento, o tema do planejamento na economia, a retomada do papel político da representação funcional, da qual é ícone institucional a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)”, enquanto os “setores subalternos não são mobilizados, e se fazem objetos passivos das políticas públicas, que, em muitos casos, incorporam à malha governamental lideranças de movimentos sociais, apartando-as de suas bases. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais institucionalizados, quase todos presentes no governo, retidos nessas suas posições, aderem ao andamento passivo e se deixam estatalizar, abdicando de apresentarem rumos alternativos para o desenvolvimento”.

Tudo nos moldes preconizados por Gramsci em seus textos clássicos acima citados e tudo posto no script de Lula 3.

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