Israel versus Palestina: a realidade por trás do conflito

por Sérgio Trindade foi publicado em 09.nov.23

Disse há certo tempo, logo após o início da reação de Israel ao ataque do Hamas, que o antissemitismo dera o ar da graça e que nem precisou de muito para constatar como continua uma praga que precisa ser combatida.

São quase dois mil anos da chaga e quase sempre, ao longo de dois milênios, ela gerou não só preconceito, mas mortes. Muitas mortes. Na mais violenta manifestação do mal, quase seis milhões de judeus foram varridos do planeta por um regime assassino.

É preciso deixar claro, porém, que nem toda crítica a Israel é antissemitismo e tampouco que o Holocausto perpetrado pelos nazistas signifique passe livre para que o Estado israelense haja como quer, sem respeitar os princípios civilizatórios.

Lendo muito e pensando sobre o assunto, nos últimos dias, resolvi escrever as linhas que seguem.

Muito se diz sobre o fato de Israel ser a única democracia no Levante (Oriente Médio). É verdade. O repúdio contra o Hamas e todas as organizações terroristas que atuam na região, entretanto, não deve nos cegar para a existência do fundamentalismo religioso nacionalista que se homizia na extrema-direita israelense, nem deixar que reconheçamos que o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu é uma liderança política desqualificada para conduzir Israel e que no governo dele a insegurança de israelenses e palestinos aumentou. Há um dado que precisa ser exposto: a qualidade do processo democrático israelense diminuiu durante o governo Netanyahu.

Com o desenrolar da guerra entre Israel e Hamas, uma luta foi travada entre os defensores de Israel e os defensores Palestina e isso deu ensejo a muita propaganda travestida de jornalismo, distorcendo a realidade política da região, quando o momento exige que seja separado o que é história e o que é propaganda.

A história é construída com fatos que são duros de engolir, mas que precisam ser ditos e escritos, sem rodeios e sem floreios. A dureza e a crueza da realidade forjarão o espírito dos homens para enfrentar e resolver os problemas que se impõem e que, por mais que queiramos, não podem ser dourados.

Israel é uma democracia parlamentarista com sistema pluripartidário. O seu parlamento, Knesset, tem cento e vinte membros eleitos para mandato de quatro anos e no qual os dois maiores partidos representados são o Likud (partido da direita nacionalista) e o Yesh Atid (partido centro-liberal), com 32 e 24 membros respectivamente. Este, representante da classe média secular israelense, é defensor da retomada das negociações de paz com os palestinos e apoia a solução que advoga a existência de dois Estados; aquele, liberal na economia e conservador nos costumes, é muito cético acerca da possibilidade de paz com os palestinos.

O partido que tem a maioria dos assentos no Parlamento (atualmente o Likud) escolhe o Primeiro-Ministro.

Como líder do Likud, Benjamin Netanyahu é o atual Primeiro-Ministro de Israel e, desde a semana que Israel foi alvo do ataque do Hamas, está à frente de um governo de coalizão, ao lado de um de seus principais adversários políticos, Benny Gantz, líder de uma coligação de partidos liberais.

A Palestina, dividida em dois territórios, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, tem uma espécie de governo duplo, com o Hamas à frente da Faixa de Gaza e a Autoridade Palestina governando a Cisjordânia.

No Democracy Index 2022 (https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2022/) elaborado pela Economist Intelligence Unit, Israel é considerado uma democracia e ocupa a 29ª posição entre os países avaliados, superando a capenga democracia brasileira e mesmo democracias consolidadas como a belga, enquanto no Varieties of Democracy (V-Dem) (https://v-dem.net/data/the-v-dem-dataset/), da Universidade de Gotemburgo (Suécia), está como uma democracia liberal, ocupando a 39ª posição, superando uma vez mais o Brasil.

Segundo os registros do V-Dem, no norte da África e no Oriente Média há 98% de regimes autocráticos (monarquias tribais e arremedos de repúblicas). Em nenhuma outra região do mundo existe algo da mesma envergadura. A Palestina, dividida em duas partes, ocupa a 135ª posição com a Cisjordânia e a 156ª com a Faixa de Gaza; a população dos dois territórios desfrutam de menos liberdade do que o Haiti e o Iraque, para ficar em um país-problema das Américas e uma reconhecida ditadura do Levante (Oriente Médio).

Israel é, por qualquer critério utilizado nos dois documentos acima indicados, uma democracia. A única da região. No entanto, o regime democrático passou, pincipalmente nas administrações de Benjamin Netanyahu (esteve como Primeiro-Ministro em dezenove dos últimos vinte e sete anos), por apertos, notadamente durante a atual gestão, acusada de tentar destruir algumas bases da democracia israelense, quando aprovou proposta de reforma judicial que restringe as atribuições do poder judiciário. Segundo a propositura do governo, o Supremo Tribunal fica impedido de agir para bloquear medidas que os juízes considerem “extremamente irracionais” (https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/israel-entenda-o-polemico-projeto-de-lei-que-limita-poderes-da-suprema-corte/).

A medida fere de morte a democracia em Israel porque os tribunais são praticamente a única frente para restringir o poder do governo, tendo em vista o país ser unicameral (só tem uma câmara legislativa) e não ter uma Constituição. Com a nova legislação, um Primeiro-Ministro com grande base de apoio no Knesset (Parlamento) não terá contrapeso legal (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/03/28/por-que-israel-nao-tem-constituicao-e-como-funciona-judiciario-no-pais.ghtml).

A atuação do governo liderado por Benjamin Netanyahu levou a população às ruas para protestar e resultou em aproximadamente setecentas detenções. O ataque do Hamas, porém, fez a política se mexer e garantir ao Primeiro-Ministro a montagem de um governo que congrega as principais forças políticas do país.

Por ora, Netanyahu segue firme no cargo, mas a firmeza dura enquanto ele oferecer respostas firmes à ameaça terrorista representada pelo Hamas e seus aliados. Passada a tormenta, ele provavelmente será um Primeiro-Ministro demissionário.

Direitos civis como liberdade de pensamento e de expressão, matéria rara no Levante, são respeitados em Israel, conforme o Repórteres Sem Fronteiras. O ranking estabelecido pela organização põe Israel na 97ª colocação, bem à frente da Palestina, que ocupa a 156ª posição, do México (128º) e da Grécia (107º). Ressalte-se que os palestinos estão atrás de países como o Afeganistão (152º), a Líbia (149º) e Quirguistão (122º) (https://rsf.org/pt-br/ranking).

Quando o assunto é direitos das mulheres, Israel também está muito à frente de todos os países da região, segundo registros do Índice de Desigualdade de Gênero, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Neste quesito, ressalte-se, os israelenses vencem França, Itália e Portugal, ocupando a 22ª posição. A Palestina está na 106ª colocação (https://maisliberdade.pt/maisfactos/indice-de-desigualdade-de-genero/).

Os direitos dos LBGT também são respeitados em Israel, de acordo com o Equaldex Equality Index, principal base de medição de direitos LGBT no mundo. Segundo os dados da plataforma, Israel aparece na 48ª posição, enquanto a Palestina ocupa a 190ª colocação. Aqui faço duas ressalvas: 1) em Tel Aviv, capital de Israel, ocorre uma das maiores paradas LBGT do mundo; 2) só sete países são mais intolerantes do que a Palestina no mundo, todos eles no Oriente Médio e no norte da África (https://www.google.com/search?q=Equaldex+Equality+Index&oq=Equaldex+Equality+Index&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOdIBCDE3NzVqMGo0qAIAsAIA&sourceid=chrome&ie=UTF-8).

Em torno de 21% da população de Israel é de origem árabe. Os que permaneceram no país depois da criação do Estado de Israel, em 1948, são cidadãos israelenses com plenos direitos civis, incluindo o direito de voto, e são representados no Parlamento (Knesset) por duas agremiações partidárias, o Lista Árabe Unida e o Hadash-Ta’al, hoje com dez cadeiras (cinco cada uma). Também mantêm os costumes, as tradições e o idioma.

Muito embora não haja tecnicamente segregação formal da população, muitos árabes reclamam de discriminação e as cidades e vilas de maioria árabe estão entre as mais pobres do país, com padrão de vida bem abaixo daquelas com predominância judaica.

O governo Netanyahu é acusado de abrigar assessores racistas, como Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Nacional, líder do partido de extrema-direita Otzma Yehudit  e associado ao  Kahanismo, agrupamento de ideologia ultranacionalista judaica fundado pelo rabino Meir Kahane, falecido em 1990.

Meir Kahane liderou o partido Kach, tão ultranacionalista e racista que foi banido, por incitação à violência e por racismo extremado, de Israel. O maior aliado geopolítico de Israel, os Estados Unidos, consideraram, em 2004, o grupo como organização terrorista.

O tema Israel X Palestina gera e acende paixões, mas é preciso deixar claro algumas coisas.

Israelenses e palestinos têm direito à autodeterminação e a existência de dois Estados, o israelense e o palestino, é a mais adequada para garantir o princípio da autodeterminação. Logo, os assentamentos que Israel montou em áreas destinadas aos palestinos são uma forma indefensável de os israelenses lidarem com o problema e constituem agressão ao povo palestino. No entanto, se os assentamentos israelenses desrespeitam a soberania palestina, um estado teocrático palestino também fere uma lista interminável de direitos humanos.

Não dá para fazer fala e escrever textos e tratados humanistas para defender autodeterminação dos povos e, ao mesmo tempo, assimilar violência política para naturalizar proposta de regime teocrático que maltrata e submete mulheres, gays e outras minorias. Os erros cometidos por Israel não justificam, sob qualquer hipótese, a ação do Hamas, do Hezbollah ou de qualquer outro grupo que tenha na violência desmedida contra civis o seu modus operandi. É necessário dizer, com todas as letras, que o Hamas é um grupo terrorista e repudiá-lo. A escalada da violência não melhorará o status de israelenses e palestinos, nem aumentará a estabilidade e a segurança da região. E por pior que seja o governo Netanyahu, o que está acontecendo na Palestina não se compara com o Holocausto (por mais que ignorantes, estúpidos e mal-intencionados queiram nos fazer crer), quando em torno de seis milhões de judeus foram assassinados. Industrialmente. Quem realiza essa comparação banaliza e diminui o nazismo e dissemina antissemitismo. E quem assim age deve ser execrado pela opinião pública.

Aos propagadores de antissemitismo, xenofobia, racismo ou aos que festejam a morte de civis deveria ser reservado opróbrio da opinião pública.

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