O autoritarismo das pautas identitárias e a tradição liberal
Com o título Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha, a professora Lília Schwarcz criou polêmica na Folha de São Paulo, no início do mês, ao analisar o álbum visual Black is Kins, recentemente lançado pela cantora norte-americana Beyoncé (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/filme-de-beyonce-erra-ao-glamorizar-negritude-com-estampa-de-oncinha.shtml#erramos)
O texto gerou debate entre estudiosos (Wilson Gomes, da UFBA, Luiz Felipe Miguel, da UNB, e Liv Sovik, da UFRJ) e indignação nas redes sociais.
A maioria das críticas nas redes sociais acusava a historiadora e antropóloga e o conteúdo do seu texto de racista. Quase todas afirmavam, com aquela ódio peculiar, que ela, por ser branca, não deveria dizer a uma mulher negra como ela deveria de exercitar os seus pendores artísticos. A maioria atacou a mensageira; poucos o texto propriamente dito.
Se a intenção é fomentar o debate – e tenho dúvidas se é – o argumentum ad hominen não é o melhor caminho.
Para os defensores das pautas identitárias, alguns temas são fechados para discussão. O que Lília escolheu é um exemplo, afinal a estudiosa brasileira, branca e de origem judaica, resolveu debater a arte produzida por uma mulher negra, sem autoridade para tal, pois não é negra. Se fosse um historiador e antropólogo no lugar de Lília, então, teria sido morto com requintes de crueldade. Heteros não têm autoridade alguma para tratar de temas que envolvam gays; homens não devem se meter a tratar de temáticas femininas. E assim por diante. E até podem, desde que não fujam as regras e normas estipuladas pela turma defensora das pautas identitárias.
Houve quem discordasse de que o texto de Lília Schwarcz apresentasse qualquer sinal de racismo e que somente negros tenham autoridade para falar e escrever sobre temas que envolvam negros, quem lamentasse o reducionismo do debate e quem defendesse o lugar de fala expresso pelos críticos de Lília.
O discurso identitário é um dos maiores riscos para os regimes democráticos, pois indicam caminhos que destroem qualquer pretensão empática, criam imensos antagonismos, minam qualquer possibilidade de diálogo e portanto não permitem conciliação alguma. Ademais, atropelam a validação empírica dos argumentos e a força da lógica.
Tão feio quanto os ataques desfechados contra Lília Schwarcz nas redes sociais, foi a recuada dela, desculpando-se por ter escrito o que escreveu (https://delas.ig.com.br/comportamento/2020-08-04/apos-critica-a-beyonce-lilia-schwarcz-se-pronuncia-nao-deveria-ter-aceito.html) (https://revistaforum.com.br/midia/lilia-schwarcz-pede-desculpas-mas-cobra-folha-por-texto-sobre-beyonce-considerado-racista/).
Sou adepto da tradição liberal clássica e, por isso, defensor da liberdade individual e da participação dos cidadãos no espaço público, que centraliza suas forças na defesa da soberania do indivíduo e na defesa da chamada liberdade negativa (ausência de coerção).
Os indivíduos devem construir seus projetos de vida segundo seus interesses, desde que não interfiram na vida de terceiros. Do ponto de vista político, se quiserem ser cidadãos passivos, recolhidos em si mesmos, submissos à arbitrariedade do poder, não há nada o que se possa fazer, ainda que eu registre certo incômodo com essa possível passividade implícita no ethos liberal.
Classicamente, a liberdade republicana foi definida como contrária à servidão. Uma pessoa é livre quando não está sob o domínio de outras. Domínio aqui tem muito mais a ver com o problema da sujeição. Na liberdade de não-dominação da tradição republicana, não há espaço para sujeição voluntária. Felicidade, para lembrar de Aristóteles, não se reduz à ausência de sofrimento, como acreditam os utilitaristas, porque é a atividade da alma, segundo a virtude perfeita, numa vida completa.
A lógica intrínseca no discurso identitário define que pessoas de um grupo e afetados por pertencer a ele teriam mais capacidade de falar sobre aquilo que sabem e vivenciam. Ora, tema algum é monopólio de debate apenas um grupo étnico (ou de gênero, etc), mas de todos que resolverem se aprofundar nele e que demonstrem conhecimento sobre ele.
Cercear o debate público é uma pretensão autoritária. E há muita gente vestida com as roupas de tiranetes e posando de defensores de boas causas.