Hat-trick da Moça Caetana
Perder pessoas importantes ou queridas é um desfalque insubstituível. E assim ocorreu num período de pouco mais de dez dias, quando a Moça Caetana carregou Pelé (29/12/2022), Roberto Dinamite (08/01/2023) e meu tio Neném (10/01/2023). Todos muito queridos.
Alguém há de perguntar: “Mas Sérgio, você não conheceu Pelé e Roberto, como pode se sentir abalado pela morte deles?”.
Todos que me conhecem proximamente sabem que o futebol é minha grande paixão; a seguir vem, longe, mas muito longe mesmo, a política. Por isso, a morte de ídolo deste esporte cala fundo em minh’alma.
Não vi Pelé jogar, mas creio naqueles que o viram. Ademais, as imagens que restaram são mais do que suficientes para confirmar a grandeza sobrenatural do jogador revelado pelo Santos Futebol Clube.
Meu pai, fã incondicional de Pelé, a ponto de dizê-lo predestinado, enfurecia-se se qualquer um ousasse diminuir a grandeza do astro brasileiro. Lembro que, certa feita, logo após a precoce eliminação do fantástico selecionado brasileiro da Copa do Mundo de 1982, ouvi papai dizer: “O Brasil nunca mais será campeão do mundo, por um motivo muito simples: Pelé não joga mais.” Eu quis retrucar fazendo um exercício comparativo entre os times titulares de 1970 e de 1982 e afirmei, depois de feita a comparação, jogador a jogador, que a distância maior não era entre Zico, um gênio, e Pelé, um deus, mas entre Serginho, uma baranga, e Tostão, um gênio. Apesar de concordar que Serginho era perna de pau e que Tostão era gênio, papai disse que não havia instrumento algum que pudesse servir para comparar qualquer jogador até aquele momento com Pelé. Quando eu insisti, papai foi incisivo: “Sérgio, não insista, porque eu vou terminar dizendo que você é um imbecil.” Gelei e não segui mais com a discussão.
Anos depois, mantive a minha tese e incorporei à de papai.
A morte de Pelé confirmou o que dizia Tom Jobim: o brasileiro adora o fracasso, por isso não gosta de Pelé. As reverências foram maiores no exterior do que no Brasil.
Não esqueçamos que o Rei do Futebol e o Atleta do Século foi o brasileiro mais conhecido do mundo, foi um embaixador informal do Brasil, foi uma celebridade global quando celebridade global era coisa rara e para sê-la era necessário fazer/produzir algo de valor.
Perdemos, com a passagem do Rei, uma parte do Brasil que deu certo, o Brasil moderno que nascia ali ao final dos anos 1950.
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Dez dias após a morte de Pelé, foi a vez de Roberto Dinamite partir para sua última viagem, deixando-me um vazio, como se eu tivesse perdido um irmão mais velho.
Comecei a assistir futebol mais detidamente, em 1974, durante a Copa do Mundo, encerrada em 07 de julho; dali em diante fui me tornando entusiasta, muito pela influência de papai e mais ainda pela fixação que eu tinha por Roberto Dinamite, craque camisa 10 do Vasco da Gama, um dos times pelo qual eu passei a torcer – o outro era o ABC, ambos por herança paterna.
O primeiro jogo que lembro de ter visto do Vasco foi contra o Santos, pelo campeonato brasileiro de 1974, duas semanas após o fim da Copa do Mundo. E nesse jogo, Roberto brilhou fazendo o segundo gol vascaíno; o Vasco bateu o alvinegro praiano por 2 a 1 e se encaminhava para conquistar o seu primeiro campeonato nacional. Ali, Roberto se tornou meu herói, imbatível e invencível. Pouco mais de um ano depois, chorei como bezerro desmamado quando o América-RN venceu, em São Januário, por 1 a 0, o Vasco. Gol de Washington. Vitória que fez a fortuna de ganhador solitário da Loteria Esportiva.
A derrota para o América me deixou inconsolável, mas não diminuiu minha admiração por Roberto (mesmo porque ele desfalcara o cruzmaltino naquele jogo).
Testemunhei, na segunda metade dos anos 1970 e durante o início da década de 1980, Roberto carregar o Vasco da Gama nas costas, rivalizando com o timaço do Flamengo, que começou a ser montado em 1978 e que se manteve, com pequenos ajustes, por cinco anos, controlando o futebol carioca e brasileiro.
Apego-me a um mandamento boleiro: Pelé e Roberto Dinamite, a quem eu julgava imortais, permanecem mesmo vivos. Os que seguiram a sina de todos os mortais foram Edson Arantes do Nascimento e Carlos Roberto de Oliveira.
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Estava eu preparando-me, hoje pela manhã, para rascunhar as linhas acima, quando recebi a notícia da morte de meu tio Neném.
Nascido Joaquim Bezerra Filho, em 25 de setembro de 1935, e conhecido como Neném de Quinca, foi, desde muito cedo, um trabalhador compulsivo, um fazendeiro tradicional e um comerciante sagaz. E muito mais coisas que o tempo e a prudência não me permitem, por ora, escrever.
Tio Neném viveu 87 anos, a maior parte de forma intensa. Era um dos dois irmãos de minha mãe ainda vivo (a outra é a nonagenária tia Dodora). Algumas das histórias mais saborosas, nas quais esteve envolvido diretamente, foram-me contadas por ele ou por pessoas que as testemunharam.
Eu adorava ir a Upanema, oeste do estado, para ouvi-las. E assim o fiz por anos. Ouvi-as sempre e com cada vez maior empolgação
Ao saber da notícia, que, confesso, já esperava, senti como se estivesse tendo um pedaço de mim arrancado. Sinto mais ainda porque da última vez que estive na sua casa não pude abraçá-lo e ser por ele abençoado e por não ter ouvido a saudação de sempre “Ê cumpade…”, usada sempre que cumprimentava alguém que chegava ou sempre que queria dizer alguma reprimenda a alguém ou ainda quando queria pilheriar.
Perdê-lo é como testemunhar a morte de uma época iniciada há mais de quatro décadas, quando íamos em férias para sua fazenda.