O professor de Filosofia, o economista e a mentira
Cursava Filosofia, entre o final do século passado e o início deste, e um colega contou uma história que era razoavelmente conhecida nos corredores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Segundo ele, um professor, muito conhecido pelas mentiras que dizia em sala de aula, foi inquirido por um aluno acerca do pensamento de um determinado filósofo contemporâneo. Depois de fazer algumas considerações sobre as ideias polêmicas do conhecido filósofo, o aluno perguntou ao professor o que ele achava.
Sem titubear, o mentiroso professor deu uma verdadeira aula, de uns 10 a 15min, sobre o tal filósofo, enquanto os estudantes riam, faziam novas perguntas e riam ainda mais. Empolgado com a receptividade de suas palavras, o professor esqueceu inteiramente o assunto da aula e passou mais de 60min falando sobre um filósofo inexistente.
Isso mesmo, o filósofo era uma invenção da turma.
Esta semana, lendo A ditadura militar e os golpes dentro do golpe – 1964-1969, de Carlos Chagas, deparei-me com história semelhante.
A deputada Sandra Cavalcanti foi indicada, por Carlos Lacerda, no início do governo de Castello Branco, para ocupar a presidência do Banco Nacional de Habitação (BNH). Com uma visão essencialmente social do papel a ser desempenhado pelo banco, logo ela entrou em rota de colisão com o Ministro do Planejamento Roberto Campos, economista, diplomata e intelectual refinado, que fascinava o Presidente Castello Branco por sua inteligência privilegiada e por suas frases e comentários precisos carregados de ironia e sarcasmo.
Para Roberto Campos, o BNH não deveria distinguir ricos e pobres na hora de fazer os investimentos.
Como a relação entre o seu Ministro do Planejamento e a presidente do BNH chegou ao ponto de ebulição, Castello Branco convocou, por insistência de Sandra Cavalcanti, uma reunião e os pôs frente a frente.
Sandra Cavalcanti não se fez de rogada e abriu a caixa de ferramentas contra Roberto Campos, criticando-o por sua insensibilidade social e disparando contra a escola econômica liberal, da qual o ministro era um dos principais divulgadores e defensores no Brasil.
Para respaldar sua crítica, Sandra citou que a nova economia usava muito as ideias do economista alemão Von Rumanchaut, como contraponto ao liberalismo econômico. As ideias do economista, dizia ela, fixavam-se na tese de que os investimentos sociais surgiam como anteparo para evitar crises políticas. Nesse momento, Roberto Campos resolveu se manifestar, alegando que já lera “toda a obra desse alemão” e que podia “garantir que está ultrapassada.”
Sandra Cavalcanti se levantou, encerrou a discussão pedindo demissão do cargo e finalizando disse: “Presidente, eu inventei agora, neste momento, a figura inexistente desse economista alemão, e o seu ministro do Planejamento acaba de dizer que já leu toda a obra dele…”.
Sandra Cavalcanti era uma mulher com extrema presença de espírito, como é possível constatar pela passagem acima, desafiando e pondo em xeque um dos homens mais inteligentes e preparados que o Brasil já teve.
Há uma passagem, também emblemática, envolvendo-a.
Entre os anos 1950 e 1960, o jornalista e cronistas Antônio Maria tinha um programa na TV Rio e uma das entrevistadas foi justamente Sandra Cavalcanti. Em dado momento, sapecou a pergunta: “Quer dizer, dona Sandra, que a senhora é uma mal-amada?”. Ela sem subir tom e volume respondeu: “Posso até ser, senhor Maria, mas não fui eu que fiz a música Ninguém me ama.” (https://www.youtube.com/watch?v=Hm4XEBwfpqQ)
Há uma outra versão mais detalhada: “Dona Sandra, a senhora é mal-amada porque é lacerdista ou é lacerdista porque é mal-amada?”. A resposta: “Não fui eu quem fez Ninguém me ama”.