A partida do mestre
Acordei cedinho ontem, 06/01, e vi a foto de Mário Jorge Lobo Zagallo estampada nas páginas dos principais noticiosos do país, anunciando que o Velho Lobo partiu, aos 92 anos, para a última viagem.
Cresci ouvindo cobras e lagartos de Zagallo, principalmente depois da eliminação do Brasil na semifinal da Copa do Mundo de 1974, quando fomos derrotados, por 2 a 0, pela Holanda. Depois o selecionado nacional foi derrotado, na disputa pelo terceiro lugar, para a Polônia.
Tirando as pornografias, o menor nome que ouvi foi retranqueiro. E quem assistia/ouvia futebol à época (o mundial de 1974 foi, mesmo não acompanhando cuidadosamente, o primeiro que assisti) sabe que retranqueiro era o equivalente a um palavrão.
A grande mídia detestava Zagallo. Idem para os setores mais progressistas, seja lá o que isso signifique, porque ele “roubara” o comando do escrete brasileiro de João Saldanha às vésperas da Copa do Mundo de 1970, justamente aquele que trouxe, em definitivo, a Taça Jules Rimet para a vitrine da Confederação Brasileira de Desportos – CBD (atual Confederação Brasileira de Futebol – CBF). Aqui um esclarecimento, João Saldanha montou, durante as eliminatórias, a base da Seleção Brasileira que jogou nos gramados mexicanos, no entanto o escrete brasileiro não jogou com a mesma formação das eliminatórias, pois Zagallo deu uma repaginada no time.
Muita gente, eu incluído, repetia os jargões e as palavras de ordem vindos do rádio, da televisão e dos jornais e revistas. Todos dizíamos que Zagallo era um atraso e, assim, ele foi inviabilizado como técnico. Treinou um ou outro time entre o final dos anos 1970 e durante a década seguinte, mas só foi reabilitado no início dos anos 1990 por Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, seguindo conselho do sogro João Havelange, ex-presidente da CBD e então presidente da FIFA. Vale ressaltar que Havelange dirigiu a CBD nos anos de ouro do futebol brasileiro, quando conquistamos o tricampeonato de futebol (1958, 1962 e 1970), e Ricardo Teixeira juntou, como presidente da CBF, à nossa galeria mais dois títulos mundiais (1994 e 2002). Dos cinco títulos, Zagallo esteve presente em quatro, dois como jogador e dois no banco, como técnico (1970) e como coordenador técnico (1994), este último na companhia de Carlos Alberto Parreira, treinador do time. O mesmo Parreira que em 1970 era membro da equipe de preparadores físicos liderada por Admildo Chirol.
Quando Zagallo assumiu a coordenação técnica da seleção que disputou as eliminatórias da Copa do Mundo de 1994, muita gente por aqui já havia escolhido a maior divindade do futebol para falar mal. Daquele momento em diante, Pelé foi eleito por aqueles que se consideram monopolizadores da virtude como o ídolo de pés de barro. Virou moda falar do Rei do Futebol, porque Pelé não criticou a ditadura, porque Pelé não combateu o racismo, porque Pelé não reconheceu uma filha, porque Pelé não militou a favor dos gays, porque Pelé não era socialista como Maradona, porque Pelé não se engajava em nenhuma causa que os propalados progressistas achavam que ele deveria se engajar. Estava explícito o que Nélson Rodrigues, um dos nossos gênios, identificara, em texto publicado no ano de 1959, na alma brasileira – o nosso viralatismo, que emerge de tempos em tempos para negar mérito aos nossos heróis.
No caso de Pelé, negam os feitos exigindo que Édson Arantes do Nascimento fosse outra pessoa; fazem, guardadas as devidas proporções, o mesmo com Romário, porque, segundo os pretensamente virtuosos, o baixinho é político medíocre. Fazem coisas semelhantes com muitos outros: Zico, Garrincha, Ronaldo Fenômeno, Rivaldo, etc. Para ficar apenas no mundo do futebol.
Voltemos a Zagallo.
A fama de retranqueiro de Zagallo foi forte. E o seu toque não foi por muito tempo reconhecido no selecionado de 1970, o mais fenomenal time de futebol já montado, dito por quem, brasileiros e estrangeiros, viu-o jogar. Uma insânia sem tamanho, afinal Zagallo mudou não só a convocação (faltaram nomes importantes e outros foram sem que tivessem brilho para lá estar, como sempre ocorre), mas a escalação e, principalmente, o esquema.
Zagallo foi alçado ao comando da seleção porque João Saldanha, teimoso e voluntarioso, quis barrar Pelé, dizendo que o camisa dez estava enxergando mal, tinha um problema oftalmológico. Há quem diga que Saldanha caiu porque não quis convocar Dario e Zagallo o fez.
Saldanha caiu, Zagallo assumiu e Pelé foi ao mundial, sendo eleito o melhor jogador do certame. Dario nunca foi sequer ventilado para entrar em campo em qualquer dos jogos da Copa.
Foi Zagallo quem decidiu escalar Wilson Piazza, médio-volante do Cruzeiro, como quarto-zagueiro. Passados cinquenta anos, técnicos europeus passaram a escalar volantes na zaga para melhorar a saída de bola.
Zagallo também decidiu escalar Jairzinho e Rivellino nas pontas, com este último recuando, quando o adversário tinha a bola, para compor o meio-campo e praticamente inventou o meia-ponta-de-lança, Jairzinho, que não jogava aberto nas extremas, mas caía entre as linhas. Não custa lembrar: Jairzinho era ponta-de-lança de origem e Rivellino era meia armador.
E Tostão? Bem, este foi a primeira versão de falso nove da história. Não foi exatamente criação de Zagallo, pois o número 8 do Cruzeiro jogou assim durante as eliminatórias, no entanto o Velho Lobo aperfeiçoou o invento de Saldanha. Ponta-de-lança de origem, como Jairzinho, e sem corpo para jogar enfiado entre zagueiros, Tostão atuou como pivô na frente da área, mas não segurando os zagueiros como corpo para preparar jogadas para quem vinha de trás. O 9 do Brasil jogava caindo pelos lados para permitir a penetração em facão de Jairzinho na área adversária.
Quando treinou a seleção brasileira na Copa do México, Zagallo já era um nome reverenciado no meio futebolístico. Foi um ponta habilidoso, versátil e taticamente brilhante. Ele recuava e compunha o meio-campo acompanhando os meias adversários. Numa época em que cada time jogava com dois no meio, a inteligência tática de Zagallo deixava o seu time com um a mais no meio, onde as partidas passaram a ser decididas. De sua atuação nos gramados, o sistema evoluiu, aos poucos, do 4-2-4 para o 4-3-3.
Mesmo Zagallo criando inovações táticas, grande parte da mídia brasileira dizia que o cérebro da seleção de 1970 era Gérson, um jogador genial e de fato um técnico dentro de campo, mas que nunca foi treinador na vida (O Canhotinha tornou-se um dos grandes comentaristas de rádio e de televisão do país).
Não foram poucos os que riram de Zagallo quando ele disse, entre 1997 e 1998, estruturar taticamente a seleção que foi ao mundial da França num 4-3-1-2. Menos de cinco depois uma infinidade de times europeus jogava no mesmo formato; o 1 era o meia-ponta-de-lança, que chegava, pelo meio para armar jogadas com os dois atacantes.
Se nada disso é importante, vamos a números frios: dos cinco mundiais do Brasil, Zagallo, como dito acima, participou de quatro; das sete vezes que foi a mundial com a seleção brasileira (1958 e 1962, como jogador; 1970, 1974 e 1998, como treinador; 1994 e 2006, como coordenador técnico), Zagallo foi campeão (1958, 1962, 1970 e 1994), vice-campeão (1998) e quarto lugar (1974).
Conto, para terminar e ilustrar o que escrevi uma história ocorrida durante a Copa de 1998.
Assistíamos (Rubinho Lemos e dois primos seus, Luiz Alberto, dos mais competentes infectologistas deste estado e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e seu irmão, Eimar Marinho, à época professor da mesma universidade, eu e outra pessoa da qual não recordo o nome e que aqui batizo como Zezinho) ao jogo contra a Dinamarca. Zagallo insistia com Leonardo, canhoto que começou no Flamengo e passou pelo São Paulo e por times do exterior, jogando pelo lado direito do meio-campo brasileiro. O time parecia torto e travado e Zezinho não parava de reclamar do erro de Zagallo. Incomodado com as seguidas e cada vez mais enfáticas reclamações de Zezinho, Luiz Alberto disse, para riso de todos nós: “Porra Zezinho, para de reclamar. Zagallo já foi a seis Copas do Mundo e quem entende de futebol é você que foi apenas a um Norte-Nordeste de Pesca, é?!”.
A morte de Zagallo significa a partida do último grande amante da camisa amarela que assustou o mundo quando foi envergada por onze homens num campo de futebol.