Estado brasileiro: bem privado
Há quatro obras essenciais para entender como o Estado brasileiro foi e continua sequestrado pelo estamento burocrático: A Construção da Ordem e Teatro das Sombras, de José Murilo de Carvalho; Os donos do poder, de Raymundo Faoro; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.
Em A Construção da Ordem e em Teatro das Sombras, José Murilo de Carvalho discorre sobre como a construção do Estado brasileiro foi obra de uma elite que excluiu o povo da participação política, reforçando a tradição autoritária. A tese do intelectual mineiro adequa-se à perfeição a outros dois clássicos da historiografia brasileira, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Nesta, a cultura brasileira é apontada como profundamente personalista e com traços indiscutíveis de cordialidade, o que dificulta o desenvolvimento de instituições impessoais e democráticas, enquanto aquela apresenta o patrimonialismo e o estamento burocrático como responsáveis por moldarem uma estrutura de poder autoritária e excludente no Brasil.
Diariamente deparo-me, desde que ingressei no serviço público estadual e federal, com casos escabrosos de desvios de recursos públicos, favorecimentos pessoais e empreguismo. Quinta-feira estive lendo, final da noite, sobre um que expõe, do ponto de vista legal e principalmente do ponte de vista moral, as vísceras do Estado brasileiro. O inaceitável é, desde sempre, normalizado e, parece, que a situação chegou às raias do desavergonhamento.
As instituição estão funcionando no Brasil – e este talvez seja um dos principais problemas. Afinal, elas parecem que foram construídas para funcionar exatamente como funcionam, garantindo benesses a patotas. A corrupção está se tornando completamente legal. Gambiarras são criadas para dotar o imoral de aura legal.
Desde o processo de formação do Estado brasileiro, analisa José Murilo de Carvalho, em A Construção da Ordem, que a nossa elite construiu instituições políticas escoradas na figura do Imperador, no Poder Moderador e na burocracia estatal, mantendo, como expõe o mesmo autor em Teatro das Sombras, o povo ausente do processo e uma representação de fachada, um teatro no qual a cidadania é restrita e apenas formal, com a massa da população excluída dos direitos políticos e das decisões nacionais. Em suma, uma tradição autoritária e uma cidadania passiva, nada distante do que Raymundo Faoro apontou, em Os donos do poder, ao final da década de 1950, e instituições sedentas e terrivelmente injustas e imorais. Para Faoro, nada mudará enquanto elas não existirem para servir ao povo e não se servir dele. Mais, o patrimonialismo e o estamento burocrático moldaram a estrutura do poder no Brasil desde a colonização, gerando uma tradição autoritária e uma elite que monopoliza o Estado, impedindo o florescimento de uma sociedade civil autônoma e democrática ou como registrou Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, uma tradição cultural marcada pelo personalismo, elemento que dificulta a institucionalização de práticas políticas democráticas e a construção de uma sociedade baseada em regras impessoais, características da modernidade ocidental.
O nosso fracasso institucional democrático está configurado quando as instituições extraem riqueza do trabalho para produzir dificuldades no cotidiano do cidadão e para furtá-lo e roubá-lo, criando castas que vivem do assalto ao trabalho de todos Ora, “(…) ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra. sorte o vinho novo romperá os odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão. Mas o vinho novo deve deitar-se em odres novos, e ambos juntamente se conservarão” (Lucas 5:37-38).