Moralismo de vitrine
No Brasil, ética na política é como planta de plástico: serve para enfeitar a sala, mas ninguém espera que cresça. De tempos em tempos, surge uma geração de vestais da moral pública, as quais apontam dedos, fazem discursos inflamados, posam para fotos com cara de indignação e garantem que, desta vez, a ética chegou para ficar. Até que vem a vez delas – e aí, a ética pega o elevador e vai embora.
A encenação não é nova. No início do século XVI, Nicolau Maquiavel já havia dado o diagnóstico com a frieza de um legista. Em O Príncipe, explicou que política tem lógica própria, distinta da moral da sacristia ou da ética de colégio interno. O príncipe não governa com o coração, mas com a razão – e com nervos de aço. Às vezes, precisa mentir, enganar, ludibriar e até mandar prender familiares e amigos próximos. E tudo isso pode ser legítimo, desde que feito em nome da estabilidade do Estado.
Maquiavel não era cínico. Era apenas realista – e lúcido. Ele não recomendava a corrupção, mas entendia que a pureza política é um artigo de ficção e, acima de tudo, de propaganda. Para ele, a virtù de um líder estava em sua habilidade de domar a fortuna, aquela entidade instável que derruba impérios e elege demagogos e populistas. O que interessava era a ordem, não a beatificação e canonização do governante. Ética pessoal e ética política são primas distantes: se se encontram, ótimo. Se não, que vença o que for melhor para o Estado.
Quase quatro século depois, Max Weber tocou na mesma tecla, só que com sotaque alemão. Em sua conferência A Política como Vocação disse que há duas formas de ação ética: a da convicção e a da responsabilidade. A primeira é para quem age segundo seus princípios, ainda que o mundo desabe ao redor. A segunda é para quem mede as consequências. Um político que ignora as consequências é como um médico que receita sem olhar o prontuário: perigoso, mesmo com boas intenções.
Weber não jogou a ética fora. Apenas avisou que a política real exige que se coloque o pé no chão antes de subir ao púlpito. Ao contrário dos cruzados do X (antigo Twitter) e congêneres sabia que a virtude em excesso costuma ser irmã siamesa da tragédia.
No Brasil, o moralismo político sempre teve mais palanque do que prática. Nos anos 1950-60, a UDN assumiu o papel de virgem ofendida. Era a vestal da República. Para os udenistas, os políticos que não rezasse pelo credo liberal-conservador eram, por definição e essência, corruptos, populistas ou esbirros do atraso. Eles usavam a palavra corrupção para explicar tudo que não entendem e/ou não controlam.
Na prática, a UDN era tão moralista quanto ineficaz. Sua cruzada ética servia bem no papel de oposição, mas quando chegava ao governo – nas governanças estaduais ou na presidência da república – o discurso virava fumaça e as práticas seguiam o mesmo cardápio de conchavos, fisiologismo e clientelismo que tanto condenava e denunciava. Era a política do espelho: apontava os pecados dos outros e esquecia dos próprios.
Duas décadas adiante, o moralismo ganhou novas cores: vermelho estrelado. O Partido dos Trabalhadores (PT) dos anos 1980-90 se apresentou como a reserva moral do Brasil. A nova vestal, mas de outra vertente ideológica. Seus quadros se declaravam imunes à corrupção, às negociatas e à velha política. O partido era uma mistura de cartório ideológico e seita puritana. Seus militantes se achavam moralmente superiores a todos – até que o mensalão derrubou o altar e o petrolão ateou fogo nas cortinas. O PT era, para repetir dito de político experiente, a UDN de porre.
A queda foi mais sonora porque a pose era mais alta. O PT, ao transformar o moralismo em plataforma de governo, esqueceu-se de Maquiavel e Weber, tão citado pelos seus acadêmicos – e mais grave – ignorou a aritmética do poder. Acabou reproduzindo os vícios que jurava combater e oferecendo um banquete de hipocrisia para seus adversários.
Há uma lição básica que nossos políticos insistem em não aprender: se você baseia sua atuação em cobranças morais, prepare-se para viver sob holofotes. Quem transforma ética em marketing precisa ter passado limpo, telhado blindado e espinha firme – porque a guilhotina do moralismo não perdoa nem os carpinteiros que a montam.
O político que sobe em qualquer caixote para lacrar, posar de puro ou ensinar ética aos outros, mais cedo ou mais tarde verá sua caixa virar palanque do adversário. E a plateia, como sempre, vai aplaudir a degola.
Maquiavel e Weber não nos convidaram a ser cínicos, mas a sermos adultos. Política não é feira de virtudes, tampouco concurso de santidade. É o espaço no qual se tomam decisões difíceis, muitas vezes trágicas, em nome do bem coletivo. E onde as boas intenções, quando descoladas da responsabilidade, fazem tanto estrago quanto a má-fé.
Enquanto a política brasileira continuar sendo palco de moralistas de ocasião e de picadeiro, com discursos de bronze e práticas de latão, continuaremos nesse teatro no qual todo mundo finge ser virtuoso, enquanto negocia, escondidos e cochichando, cargos, emendas e siglas.
Os dois lados da atual polarização poderiam parar de se xingar de ladrões por cinco minutos e, quem sabe, aprender alguma coisa com Maquiavel e Weber. Seria um avanço civilizacional.