Um certo capitão Rodrigo

por Sérgio Trindade foi publicado em 31.out.25

Acompanhei, com interesse, a cobertura midiática sobre os eventos que se desenrolaram no Rio Janeiro e que resultaram em mais de uma centena de mortos e mais de oitenta prisões. Em dado momento, fixei-me nas análises feitas por Rodrigo Pimentel, ex-capitão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, sobre o ocorrido. O ex-militar me lembrava alguém. Depois de muito refletir, veio-me à mente um personagem da literatura brasileira.

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Rodrigo Rodrigues Pimentel nasceu no Rio de Janeiro em 2 de março de 1971 e cresceu numa cidade que, aos poucos, transformava a paisagem tropical em território conflagrado.

Entrou na Polícia Militar (PM) em 1990, ainda jovem, e lá encontrou o cenário que definiria sua vida e sua visão de país: a falência de um Estado que não governa o que pretende e não protege o que promete. No Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), Rodrigo Pimentel chegou a capitão em 1995. Durante seis anos, viveu o submundo do combate diário nas favelas, nas vielas tomadas pelo tráfico e pela miséria, onde o lema Faca na Caveira não era bravata nem bazófia, mas doutrina de sobrevivência.

Aquele ambiente, feito de adrenalina, morte e camaradagem, moldou não só o oficial, mas o estudioso que viria depois, um homem que viu o Estado se encolher diante do crime e que, por isso, defende que o crime seja enfrentado como se enfrenta um inimigo militar.

Aos 33 anos, cansado da engrenagem e das rachaduras internas da corporação, Pimentel pediu baixa. Disse, mais tarde, que o fez por desilusão com a corrupção e a burocracia que transformavam o policial em refém do próprio sistema. Mas não abandonou o tema. O homem que saiu da PM virou escritor, roteirista e analista de segurança, e, paradoxalmente, foi pela cultura de massa que seu discurso ganhou voz.

O Brasil conheceu Rodrigo Pimentel quando Tropa de Elite explodiu nas telas, na segunda metade da primeira década deste século. O filme, escrito em parceria e baseado no livro Elite da Tropa, revelou o inferno moral da guerra urbana carioca. Seu alter ego cinematográfico, o Capitão Nascimento, vivido por Wagner Moura, virou ícone de uma geração, símbolo de autoridade, desespero, brutalidade e ética em conflito. O personagem grita “pede pra sair”, mas o verdadeiro Pimentel, mais analítico que inflamado, passou os anos seguintes tentando explicar o que o grito escondia: que o Estado brasileiro não manda onde devia e não chega nos lugares nos quais é mais necessário.

Depois de deixar o BOPE, Pimentel migrou para o mundo corporativo e para os meios de comunicação. Tornou-se consultor de segurança, palestrante e comentarista da Rede Globo. Nos bastidores, continuou sendo o mesmo capitão – disciplinado, tático, pragmático –, mas agora convertido em intérprete de uma guerra que o país fingia não estar acontecendo. Em suas palestras, fala da Mentalidade Caveira como se fosse um método de gestão. Coragem, decisão, liderança sob pressão são virtudes de tropa que ele transplantou para o vocabulário empresarial. O que para muitos é um estilo de comando, para ele é uma filosofia de vida, afinal quando a guerra não pode ser evitada, precisa ser vencida.

Imagem feita com auxílio de IA

Pimentel enxerga o crime organizado como uma estrutura de poder que desafia a soberania nacional. Para ele, o tráfico e as milícias não são apenas expressões de violência urbana, mas sistemas paralelos de governo. “As facções”, costuma dizer, “não vendem só drogas; elas vendem segurança, impõem leis, cobram impostos e decidem quem vive e quem morre.” Logo, o Rio de Janeiro seria a imagem do Brasil quando o Estado perde o monopólio da força e da repressão. E o enfrentamento armado, embora trágico, seria o preço da reconquista. “Não há guerra limpa”, afirma, “mas a sujeira da omissão é maior.”

A crítica mais dura de Pimentel é à paralisia do poder público. Para ele, a política de segurança brasileira é uma “guerra de regras”, em que a polícia luta com as mãos atadas por decisões judiciais e pela lentidão burocrática. A cada operação criticada e contestada, diz ele, multiplica-se o medo de agir. O resultado é o que se vê: territórios dominados, policiais mortos, comunidades inteiras reféns de um Estado paralelo.

O ex-capitão não é indiferente às mortes civis. Reconhece o drama, mas insiste em enquadrá-lo na moldura mais ampla, a de uma guerra não declarada, que só existe porque o Estado desistiu de vencer. Sua análise é incômoda porque, ao mesmo tempo que denuncia a violência, justifica-a como inevitável. Ele costuma lembrar que, nas décadas de 1990 e 2000, o BOPE não perdia território; o Estado é que se ausentava. Por isso, quando o governo tentou substituir o BOPE por políticas de “pacificação”, Pimentel foi um dos primeiros a prever o colapso, pois as UPPs, dizia, não se sustentariam porque o Estado que ocupava as favelas não era o mesmo que deveria administrá-las. “O policial subiu o morro”, ironizava, “mas a escola e o posto de saúde ficaram lá embaixo.”

Em 2025, o Rio de Janeiro voltou ao noticiário mundial pelas razões de sempre: operações letais nas favelas, tiroteios em plena luz do dia, helicópteros sobrevoando o Complexo do Alemão e da Penha como se fossem zonas de guerra. Centenas de tiros, dezenas de mortos.

O velho debate ressurgiu: de um lado, o discurso dos direitos humanos; de outro, o da soberania. Pimentel, fiel ao personagem e ao soldado que foi, manteve o tom sereno, mas firme. Disse que as forças policiais agiram em território hostil, dominado por facções que operam como exércitos. “O Alemão e a Penha são bunkers do Comando Vermelho”, afirmou. “Não estamos falando de pequenos traficantes, mas de organizações paramilitares armadas com fuzis, granadas e drones.” Ele tratou as operações não como tragédias isoladas, mas como sintomas de um Estado sitiado. Criticou o improviso, o despreparo e a ausência de planejamento estratégico de longo prazo. “Entrar é fácil”, disse. “O difícil é ficar.” Para ele, cada incursão policial que termina em retirada é uma confissão de derrota, confirmando a tese de que a soberania entra de farda e sai de maca. Mesmo ao lamentar as mortes, de civis e de policiais, Pimentel evita o discurso sentimental. “A guerra é uma escolha quando a paz é impossível”, repete. E, na sua ótica, a paz no Rio se tornou impossível porque o Estado brasileiro nunca levou a sério a sua própria autoridade.

Um dos temas recorrentes em suas análises é o das barricadas, não apenas as de concreto e ferro que as facções erguem nas ruas, mas as morais e políticas que o Estado constrói contra si mesmo e que Pimentel chama de “símbolo da humilhação nacional”.

Para ele, cada barricada erguida numa favela é uma fronteira simbólica, pois demarca o limite onde o Brasil acaba e onde começa o poder paralelo. “O morador dessas áreas”, diz, “não odeia o policial. Odeia o tráfico e a milícia, mas odeia ainda mais o abandono.”

A sua visão, embora militarizada, carrega um elemento de humanidade, a saber, o reconhecimento de que o enfrentamento armado é apenas o último ato de uma desgraça social. Ainda assim, não há espaço para ilusões. Pimentel é um realista radical. Acredita que o Estado deve ocupar, controlar e permanecer. O erro, para ele, é tratar o crime como um fenômeno social a ser compreendido, e não como um poder a ser derrotado, percurso que o põe em choque com parte da intelectualidade e da imprensa. Para muitos, suas posições são autoritárias. Para ele, são apenas lógicas. “Não se faz política pública em cima de cadáveres”, dizem os críticos. “Não se constrói cidadania sem soberania”, responde o capitão.

Nas entrevistas mais recentes, Pimentel tem insistido na hipocrisia do debate sobre segurança pública. “Todo mundo sabe onde estão as bocas de fumo, mas ninguém fecha”, diz. “O mapa do crime coincide com o mapa da ausência do Estado. A única diferença é que o Estado só aparece quando o crime ultrapassa o limite da conveniência política.” É o diagnóstico de quem viu a engrenagem por dentro. A polícia, diz ele, está entre o fogo cruzado do bandido e do juiz, do político e do jornalista. É cobrada para agir e punida quando age. “Querem que o policial vença a guerra sem disparar um tiro”, ironiza. A visão pode ser dura, mas traduz um sentimento real de parte expressiva da corporação. O Rio de Janeiro vive, há décadas, um impasse entre a utopia da paz e a realidade da guerra. Rodrigo Pimentel, como analista e ex-combatente, encarna essa contradição.

Há, no entanto, uma dimensão simbólica que ultrapassa o debate técnico. Rodrigo Pimentel, o homem de farda e microfone, guarda proximidade com personagem de nossa literatura. Em certa medida, é o espelho d’outro capitão: Rodrigo Cambará, criação de Érico Veríssimo.

Ambos são filhos de terras em disputa: o Cambará, das fronteiras gaúchas; o Pimentel, das fronteiras urbanas cariocas. Os dois acreditam na força, na honra e no dever. E ambos, cada um à sua maneira, encarnam a ilusão do herói nacional, aquele que luta por um país que talvez já não exista. O capitão de Veríssimo atravessa o pampa montado em seu cavalo, desafiando inimigos e paixões; o de Pimentel atravessa as vielas do Alemão em um Caveirão, cercado por sombras. Um luta por bandeiras, o outro por soberania. No fundo, porém, combatem o mesmo inimigo: a desordem brasileira, essa vocação para o improviso e a irresponsabilidade. Cambará morre com a espada na mão, convencido de que a coragem pode redimir a pátria. Pimentel, mais cético, sabe que o heroísmo moderno é estatístico, pois é medido em baixas e boletins de ocorrência. Ainda assim, ambos compartilham a mesma obstinação: a crença de que a nação precisa de quem a defenda, mesmo quando ela própria parece não querer ser defendida.

Rodrigo Pimentel é, talvez, o retrato mais nítido do paradoxo brasileiro em matéria de segurança, o do país que teme a polícia, mas clama por ordem; que denuncia o autoritarismo, mas exige mão firme; que chora os mortos da favela, mas ignora os vivos que lá sobrevivem sem Estado. Porém, ao contrário do Capitão Nascimento, seu alter ego do cinema, Pimentel não se vê como herói nem como vilão. Enxerga-se como testemunha. O Brasil, em sua leitura, é uma sucessão de territórios perdidos, e a retomada não é apenas militar, mas moral. Seus críticos o chamam de belicista; seus admiradores, de realista. Ele se diz apenas pragmático. “O Estado precisa escolher se quer governar ou ser governado”, resume. É uma frase que caberia tanto na boca do capitão de farda quanto na do escritor que ele se tornou.

Quando Rodrigo Pimentel comenta as operações do Alemão e da Penha, fala com a serenidade de quem já esteve ali. Sabe que a guerra, no Rio de Janeiro, é um ritual que se repete há décadas: o helicóptero sobe, a tropa desce; o Estado se exibe, o crime resiste. O ciclo se fecha até a próxima manchete. Mas há uma diferença. Hoje, o capitão fala não apenas por si, mas por uma ideia de país que teima em sobreviver nas franjas do caos. Como o capitão Rodrigo Cambará, ele carrega a sensação de que o heroísmo é inútil, e, ainda assim, indispensável. A coragem, nesses dois Rodrigos, não é apenas virtude, é condenação. Um lutou por uma república que nunca chegou; o outro luta por uma ordem que nunca se estabeleceu. Ambos pertencem a uma nação que vive entre a bravura e a desistência. Talvez o Brasil, como os dois capitães, precise sempre de alguém que avance, mesmo quando  a maioria quer recuar.

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