Censura, censor e humor – Parte 2

por Sérgio Trindade foi publicado em 02.nov.20

Quando Castello Branco assumiu a presidência da república, em abril de 1964, os palcos passaram a desempenhar importante papel oposicionista e, aí, a literatura, a música, o cinema e as telenovelas sofreram tanto ou até mais do que a imprensa, ainda mais depois da edição do AI-5.

Poucos artistas foram mais censurados do que Chico Buarque de Hollanda, desde que regressou do exílio voluntário no início dos anos 1970.

Em 1966, o Teatro da Record, com capacidade para 1.500 pessoas, ficou superlotado, para assistir a um festival de música que terminou em polêmica – Disparada, de Geraldo Vandré (um artista de alinhamentos políticos automáticos, o que o tornava ser raro no meio em que vivia) e de Théo de Barros e interpretada por Jair Rodrigues, dividiu o primeiro prêmio com A banda, de Chico Buarque e cantada por Nara Leão. Daí até o final do regime, em 1985, a música brasileira desempenhou papel de vanguarda na luta contra o autoritarismo do governo.

No ano seguinte, a TV Record organizou um festival que entraria para a história, pelo envolvimento da plateia e pela reação dos artistas. O show começava com os apresentadores, Márcia Real e Blota Júnior, passando pelos jurados (com nomes como Chico Anysio e o jornalista Sérgio Cabral) e chegando aos artistas, notadamente os finalistas (Nana Caymi, Nara Leão, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Elis Regina, Roberto Carlos, entre outros).

O festival da Record ocorreu no dia 21 de outubro de 1967 exatamente as 21h e foi histórico por vários motivos: foi ali que a Tropicália fez a sua estreia, trazendo um quarteto baiano (Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé) que marcaria com tintas fortes a nossa música. E ainda trazia os versos de Torquato Neto e os arranjos arrojados e revolucionários de Rogério Duprat, mesclando guitarras e órgãos elétricos e ruídos sonoros variados.

O festival também foi marcante pela confusão envolvendo o compositor Sérgio Ricardo, cantando a sua Beto bom de bola, que trazia a temática do futebol, considerada alienante, pois fugia inteiramente aos padrões estéticos e políticos preferidos pelo público mais engajado. A canção, difícil e longa, já desagradara na fase anterior e foi vaiada logo que anunciada, a ponto de o cantor e compositor dizer que dali em diante iria rebatizá-la como Beto bom de vaia.  Sem poder executá-la a contento, Sérgio Ricardo perdeu a paciência, abandonou o palco, quebrou o violão e o arremessou na plateia que vibrava.

Um ano depois, o festival organizado pela TV Globo foi o catalisador da crescente radicalização política que ocorria no país, fenômeno que, ressalte-se, parecia mundial mas que no Brasil encontrara terreno fértil para se disseminar.

Cantando É proibido proibir, Caetano Veloso foi hostilizado pela plateia que, além de não entender nada do trabalho, exigia, há certo tempo, dele e de Gilberto Gil, um posicionamento mais crítico contra o governo. Irritado, Caetano teve o seu momento Sérgio Ricardo, entrando em confronto com o público: “Essa é a juventude que está matando hoje o velhote inimigo que já morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada.” Classificado, Caetano se recusou a participar da última etapa que, a exemplo do festival da Record de 1966, terminou com o confronto entre Chico Buarque e Geraldo Vandré. Chico chegava à final com Sabiá, parceria com Tom Jobim, e Vandré com Pra não dizer que não falei de flores.

O público já decidira. Sabiá, interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele, recebeu uma sonora vaia e, quando saiu o resultado, com a música de Vandré sendo derrotada pela de Chico e Tom, as jovens cantoras do Quarteto em Cy cantaram-na chorando, debaixo de vaia ensurdecedora. https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2018/04/fiquei-muito-revoltada-com-aquela-vaia.html

Com o espaço público fechado pelo AI-5, em dezembro de 1968, e por um regime cada vez mais repressor, as artes passaram a ser o espaço por meio do qual ainda era possível expressar, com mensagens cifradas, o descontentamento.

Em seu retorno ao Brasil, Chico Buarque, que escrevera Sabiá como uma canção de exílio e que não foi entendida por um público, apesar de formalmente educado, tosco e incivilizado, fez, em parceria com Gilberto Gil, Cálice, um hino que denunciava a censura e que foi proibida por seis anos.

A peça teatral Calabar, o elogio da traição teve tantas músicas parcial ou totalmente cortadas, terminou suspensa.

Para fugir à rigidez da máquina censora do governo, Chico criou o pseudônimo Julinho da Adelaide e uma das músicas do “novo” compositor fez tanto sucesso, que se difundiu a lenda de que fôra feita para a filha do presidente Geisel, Amália Lucy, desmentido pelo compositor.

Após descobrir o esquema montado por Chico Buarque, a censura passou a exigir que as músicas deveriam vir com o nome completo do compositor, número de identidade e do cadastro de pessoas físicas.

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