Espírito público
Registro que uso este espaço para escrever bobagens em doses homeopáticas, justamente para não maltratar os leitores. Desta vez, no entanto, não serei muito econômico com as palavras e, por isso, peço perdão para os que se disporão a ler e que serão torturados por este escrevinhador.
Tem faltado juízo e espírito público e sobrado personalismo e voluntarismo aos grupos politicamente ativos no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), desde a nomeação de um reitor-interventor, como dizem seus opositores, ou de um reitor pro-tempore, segundo os que defendem a medida do governo federal de recusar a posse ao professor José Arnóbio, reitor eleito, e pôr no seu lugar o professor Josué Oliveira.
Não entrarei no mérito da intervenção ou da pro-temporalidade, agora. Talvez em outro momento. Se e quando eu não estiver enfastiado, como estive por dias das pendengas politiqueiras que envolvem o IFRN.
O motivo do meu fastio é variado, mas a essência dele refere-se ao fato de ver, inopinadamente, o meu nome envolvido, por alguém, na trama que impediu a posse de Arnóbio e viabilizou a de Josué. Cheguei a fazer post em rede social sobre isso e não vou perder tempo e espaço com o assunto neste texto. Registro, porém, uma coisa: tenho interesse num outro assunto e ele virá a público quando eu puser as mãos em documentos oficiais, já solicitados, para apontar como gestores e ex-gestores que gritam pela defesa da autonomia universitária pisaram desavergonhadamente na autonomia pedagógica, umas das pedras de toque da LDB. Talvez um dia volte ao assunto.
Rompido o longo nariz de cera acima, volto ao tema citado no segundo parágrafo.
O IFRN vai para cinco meses sem aula. Isso mesmo, cinco meses. Pouco mais de um mês (17 de março a 20 de abril), quando o reitor era o professor Wyllys, e quase quatro meses (de 20 de abril até o momento), sob a gestão de Josué. O argumento central de grande parte dos paralisistas (os que são refratários ao retorno das atividades de ensino) é que a volta às aulas, de forma remota, deixaria algo em torno de 30% dos alunos, sem acesso à internet, sem poder acompanhá-las.
Louvável preocupação, pois se a instituição tem condições materiais de garantir que as aulas cheguem a 100% dos seus alunos, que o faça. Registro que, daqui para frente, é necessário que gestores passem a se preocupar seriamente com a alta taxa de evasão, desistência, etc, discutida e desprezada ao longo da última década. Não o fazendo, o discurso que verbalizam hoje em reuniões e em documentos produzidos soará hipócrita. É de bom tom, portanto, que conselhos e colegiados sigam vigilantes com a gestão atual e com todas que a ela se seguirão.
O meu estado de letargia até aqui, recusando-me a participar do debate sobre a volta às aulas, está associado ao já dito acima, no quarto parágrafo, e a outros dois fatores:
1) Minha percepção de como demagogos, preocupados em fazer palanque político, posam de arautos da boa-nova e do quão “amam” a instituição e os estudantes. Nem falo, aqui, sobre a ação dos alpinistas, que aliam a ascensão na carreira funcional, ocupando cargos, à necessidade de futricar;
2) Inabilidade política do atual reitor, apesar de sua mansidão e calma no falar.
Nada explanarei sobre o primeiro item. Dedico a ele o silêncio misericordioso.
O segundo é, de fato, mais delicado. Ali está o nó górdio e, para analisá-lo, peço socorro a três pensadores.
Segundo Aristóteles, a política está umbilicalmente ligada à moral, dado que o fim último do Estado, onde se faz política em essência, é a virtude. A política e a moral, entretanto, têm objetivos diferentes, pois esta lida com o indivíduo e aquela, com a coletividade. Diria o maior filósofo da antiguidade e tutor de Alexandre Magno que a ética é a doutrina da moral individual e a política, a da moral social, e como o Estado é superior ao indivíduo, tendo em vista a coletividade ser superior ao indivíduo, o bem comum é superior ao bem particular. O Estado é uma sociedade e qualquer sociedade pretende obter alguma vantagem. Engana-se quem pensa ser o poder de qualquer governante diferente do de um pai de família e de um senhor apenas pelo número maior de súditos. Não há “diferença específica entre seus poderes”. O homem é um animal político e a natureza lhe concedeu o dom da palavra, que não deve ser confundida apenas “com os sons da voz”, como capacidade de discernir “o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto”. O órgão da fala é apenas instrumento para que nos manifestemos e para permitir o tráfego da palavra como “o laço de toda a sociedade doméstica e civil”. Dito isto, prossegue ensinando, que o bem, propriamente humano, é o fim e todo fim buscado por si mesmo, sem exigir nenhum outro, é o bem-comum.
Quase dois milênios depois Maquiavel acrescentou tempero à discussão, rompendo com a noção predominante de política como mera reprodução de um código de ética universal, e pensando-a como a prática de governar a partir de um código de conduta sintetizado no conceito de razão de Estado, assim resumido: em dados contextos, o príncipe deve agir guiado por valores que mantenham “seus súditos unidos e obedientes”, mantendo-se sempre que possível no caminho do bem, mas podendo seguir pelo caminho do mal se necessário, proposta de certa forma referendada por Max Weber, num texto clássico, quando afirma que ética alguma “pode fugir ao fato de que em numerosos casos a consecução de fins ‘bons’ está limitada ao fato de que devemos estar dispostos a pagar o preço de usar meios moralmente dúbios, ou pelo menos perigosos – e enfrentar a possibilidade, ou mesmo a probabilidade, de ramificações daninhas”, pois quanto maior for o grau de inserção de um agente público na arena política, maior é o afastamento de suas convicções pessoais e maior será a propensão para que adote comportamentos orientados pelas circunstâncias. O afastamento das crenças e suposições pessoais e a adoção de medidas por vezes contraditórias são determinados pelo conflito entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade.
Qual a relação entre questões de Estado apontadas por Aristóteles, Maquiavel e Weber e o imbróglio que engole o IFRN nos dias que seguem?
Façamos uma abordagem por analogia.
A posse de Josué ocorreu em 20 de abril último e o evento pôs a instituição de pernas para o ar de lá para cá, com as digamos tropas josuélicas e arnobistas se confrontando nos bastidores e abertamente. É do jogo político. Josué e sua turma defendem que são legítimos e que o caso está na justiça. Arnóbio e sua turma dizem que a nomeação de Josué fere a democracia institucional.
Que ambos disputem o poder de gerir a instituição sem que, porém, o funcionamento dela fique comprometido e sem que comprometa os interesses de servidores (docentes e administrativos) e principalmente dos estudantes.
O bem comum, o fim buscado em si mesmo, está na normalidade administrativa, pressuposto que garante o retorno às atividades de ensino, fim maior do IFRN.
A sociedade olha ou um dia olhará para o IFRN e diz ou dirá que a nossa preocupação é ou tem sido resguardar os interesses de Josué e seu staff ou de Arnóbio e seu staff, virando as costas para a coletividade, que não somos nós, os servidores e muito menos os dois grupos que disputam o trono de reitor, mas a sociedade que nos sustenta.
Está mais do que na hora de os dois líderes e/ou os seus staffs, representando-os, fazerem política e não futricagem política. Um dos dois deve dar o primeiro passo e, pela posição que ocupa, o passo inicial deve ser de Josué, afinal o leme que controla a direção da instituição está com ele.
Ambos devem estar conscientes, mas principalmente Josué, de uma coisa: política é feita com base em negociação.
Política, a gestão sistêmica tem de entender, não é a arte de conquistar tudo o que ela almeja, mas a arte de conseguir o que mais deseja e ceder ao outro aquilo que não deseja tanto. Logo, cabe à gestão sistêmica decidir o que mais quer, o retorno às aulas, que, ela, gestão, enxerga como o bem-comum, e abrir mão do que não percebe como tão necessário. Sem isso, o IFRN entrará definitivamente na espiral de radicalização.
Ressalto uma coisa: diretores gerais e diretores acadêmicos, nos campi, também têm responsabilidade política e administrativa.
O caminho pode ser trilhado sem que os dois lados abram mão de suas posições e convicções políticas, mas sigam o caminho de um consenso administrativo, afinal a tarefa do gestor, voltando a Weber, é nortear suas decisões políticas com base na ética da responsabilidade (conjunto de normas e valores que orientam a decisão do político a partir de sua posição como gestor).
O caminho do confronto que se delineia cada vez mais radical, inclusive com a possibilidade do envio de tropas federais para garantir a segurança das instalações do IFRN, é extremamente perigoso (voltarei a este assunto ainda nesta semana).
Está na hora de o espírito público deixar de ser apenas um discurso.
Que se torne ação.