Liberdade do riso
Há séculos e séculos a comédia e a sátira carregam a tradição de promover piadas sobre assuntos e fatos polêmicos e sobre tabus, razão por que tais gêneros sempre estiveram na vanguarda da batalha pela liberdade de expressão, afinal uma das suas motivações fundamentais é gerar desconforto em muitos.
Elas podem ser as coisas mais próximas que a sociedade tem de um teste sobre o que as pessoas podem ou devem tolerar socialmente, dado que frequentemente não sabemos onde estão os limites, sempre em constante mudança, até que alguém se aventure a testá-los, conforme escreveu o humorista, comediante de stand-up ator e auto, vencedor de cinco Grammys, George Carlin: “É dever do comediante descobrir onde a linha é traçada e cruzá-la deliberadamente.”
Mas se a sátira e a comédia revelam uma versão do mundo, o riso é a cumplicidade do público, pois ele é uma resposta involuntária e ninguém pode ser culpado por revelá-lo.
Em O nome da Rosa, o escritor italiano Umberto Eco discorre sobre o riso, reproduzindo debate que se desenrolou ao longo da história e que remete ao segundo livro da Poética, de Aristóteles, que trata da comédia e faz apologia do riso e suas virtudes.
Na obra de Eco duas tendências estão em confronto, uma representada pelo monge Jorge de Burgos e a outra por Guilherme de Baskerville. O primeiro define o riso como fonte de dúvida e defende que ele não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade cotidiana, enquanto o segundo, amparado em Aristóteles e tentando quebrar o preceito medieval de que o riso era expressão demoníaca, considerava-o como próprio do homem e expressão de sua racionalidade.
Dizer às pessoas do que elas não podem rir não as fará deixarem de achar graça de assuntos controversos. A sátira e a comédia fascinam porque nos permitem rir do que nos inquieta. Aristófanes ria de Sócrates e isso não diminuiu a grandeza do filósofo que ensinava a Platão e tampouco maculou a importância de Aristófanes.
Essa liberdade concede poder para que diferentes pontos de vista sejam ouvidos, contribuindo para o amadurecimento geral. Até o ponto em que estaremos preparados para rir de nós mesmos, momento em que estaremos prontos para, de maneira mais solta e livre, lidarmos com nossas frustrações, nossos medos e nossas angústias.
Jogar as controvérsias do humor no lixo é atentar contra a própria natureza do humor, afinal a sátira e a comédia podem tratar do mundo real, mas não são o mundo real – apenas e tão-somente gêneros de ficção artística. Por isso, ficar ofendido com piadas, gracejos, etc é como sentir raiva de alguém que interpreta o vilão num filme, numa série ou numa novela.
Assim como ninguém vira gay porque frequenta um espaço gay ou torna-se drogado ao ir a locais nos quais drogados marcam presença, a sátira e a comédia não nos tornam mais intolerantes. Na melhor ou na pior (dependendo do referencial) das hipóteses revelam quem somos.
Brigar contra o bullying é uma necessidade, mas não o fará sumir. Com o tempo, ele se refaz e (re)surge noutro formato. É preciso aprender a conviver com a prática e incorporar métodos que nos façam rir de nós mesmos. A birra e a censura são admissão de hipocrisia de pessoas incapazes de lidar com suas diferenças, contradições, frustrações e erros.
O corolário disso: a provável construção de um país que não sabe rir de si mesmo. Retorno a George Carlin, para quem as pessoas sempre pensam “no pior e não no mais provável que é pior ainda”.