Memórias das putas sérias – 5
Odorico Gomes Dias veio ao mundo em Eçaraiapólis, terra seca do Canguçu. Era filho de uma lavadeira e um grumete que o deixaram na rua. Foi amamentado por uma loba guará secar e, depois, caiu na vida.
Criado no subúrbio carioca, entre o asfalto e a lama do mangue, aprendeu cedo a morder a vida com dentes afiados. Começou furtando balas e confeitos dos amiguinhos. Fazia uma, duas vezes e, quando descoberto, dizia que não sabia que furtar era errado. E assim foi, durante a infância, de furto em furto até que, já adolescente, partiu para algo mais ousado, o furto de carteiras e bolsas em rodoviárias. No início da idade adulta mudou-se para aeroportos. Tudo isso enquanto estudava “pra ser gente”, como lhe dizia parte da família, já que sua mãe adotiva, uma experiente loba da noite, alimentava o vício do filhote cabeçudo – pelo tamanho da cabeça e pelo mau hábito.
Sempre que descoberto, depois do segundo furto, recorria à esfarrapada desculpa de criança: não sabia que furtar era errado. Ao perceber que não convencia ninguém, negava que os objetos do furto tivessem sido furtados.
O estudo, das primeiras letras à faculdade, deu-lhe verniz acadêmico e casca de respeitabilidade. Mas era, todos sabiam, um malandro recorrente.
Mudou-se para Malassombro, capital de seu estado, e ali fincou raízes no chão que alimenta os chaleiras que cercam os poderosos poder.
Sua voz tinha um chiado de rádio estragado e os amigos diziam que ele falava assoviando – sinal para os comparsas, alerta para as sombras. Ninguém desconfiava. Odorico era discreto, voz mansa e fina e, cordato, estava sempre se oferecendo para ajudar – um dia, pensava, cobraria a fatura. Sorria com os dentes cerrados, enquanto as mãos, ágeis, esvaziavam bolsos e cofres públicos e privados.
No Seminário Tratantada, em meados do século XX, formavam-se crápulas de gravata. Homens de postura mansa e punho duro, que falavam em pátria e justiça enquanto afanavam merendas de crianças, desviavam verbas de estudantes, vendiam diplomas falsos como quem vende ilusões baratas. Odorico não era dos mais criativos. Apenas um biltre metódico, de macacão surrado e olhos baixos, sempre protegido pelos mesmos que deviam prendê-lo.
Seus amigos eram espelhos quebrados do mesmo vício: Audálio Cuenca, caraquenho criado na Vila Macondo, braço direito de Josefino Machado, diretor atrabiliário de uma outrora honrada oficina mecânica, e João Cacatua, quase irmão de sangue e todo irmão de crime, que trocara os golpes de rua por uma sinecura num atapetado gabinete. Cacatua, filho de morcega, tinha riso de hiena. Perseguia os fracos, adulava os fortes.
Odorico não tinha imaginação. Roubava por hábito, como se respirasse. Vendia pais, amigos, a própria sombra por uns trocados. Tudo sob a proteção de Abelardo Nelore, diretor da maior e mais respeitada escola do estado, e de Maria Rita Medeiros, mulher do governador do estado. A imprensa calava-se. As autoridades, de punhos lavados e engomados, abriam-lhe caminho. Quando algum repórter teimoso farejava a podridão, sufocavam-no com papéis falsos e ameaças sussurradas em corredores escuros.
Nada ali era enigma. Apenas a velha engrenagem a ranger, mastigando os desvalidos, cuspindo ossos para os urubus de colarinho branco, enquanto Odorico, inseto paciente, movia-se nas brechas até que um dia a seca – ou a justiça, se é que ainda existia – chegasse para todos.
Não chegaria tão cedo, e a patota transformava o que tocava em alcoice, bordel, cachicholo, frejo, prostíbulo, rendez-vous, tugúrio, zona… lupanar.