Memórias das putas sérias – 6

por Sérgio Trindade foi publicado em 22.abr.25

Tinha a cabeça de balão, enorme, pele lustrosa, cabelos ralos e o pescoço grosso e curto.

Foi dado ao estudo, até perceber que podia vencer sem fazer muito esforço, amparando-se no esforço e no trabalho outros. Por isso nunca teve amor ao e pelo trabalho sério. Gostava mesmo era de mexer no que não era seu. Primeiro os confeitos das quitandas e dos amiguinhos, depois carteiras, bolsas e malas nas rodoviárias e nos aeroporto – uma mão sempre ocupada, dedos hábeis, lisos como enguia em poça barrenta. Com o tempo, furtos e roubos foram se sofisticando.

Deu certo, como sempre dão os canalhas que sabem mentir com os olhos baixos e a voz mansa. Tinha paixão por carros e logo passou a frequentar oficinas, onde se metia a dar pitacos e a mexer em engrenagens mecânicas e elétricas. Cheirava a graxa e a gasolina velha, ria como se fosse honesto, puxava conversa com mecânicos, donos e balconistas de lojas de peças. Um deles, homem ingênuo e mecânico competente, confiou e caiu na lábia do malandro, como um bezerro no curral, abrindo uma firma, a Oficina Mecânica São Francisco. Fez questão o mecânico, nascido e criado em cidade de mesmo nome.

O competente mecânico fazia o que dizia – consertava e fabricava peças, tudo na unha, com suor e honestidade de sertanejo antigo. O pilantra que o cercava, depois de constatar que a empresa estava bem estruturada e com sólida freguesia, propôs sociedade. Café na padaria, conversa de esquina, meu amigo pra cá e pra lá, assinaram os papeis – e o que era de um, agora era de dois.

Um dia o criador da oficina acordou sem nada. O pilantra lhe tomara tudo. Foi à justiça, usou documento forjado, registro maroto. Disse que a marca era sua, mostrou nota, logotipo, contrato falso. Convenceu juiz, tabelião, e o diabo. A firma agora era somente dele. O antigo dono calou. Não havia a quem reclamar. Foi vender picolé na praça. E o pilantra seguiu, impassível, como quem varre o chão após o crime.

Casado, em primeiras núpcias, com uma dona de casa calada, dessas que somem na sombra dos armários, teve cinco filhos. Depois veio a segunda: anã, farmacêutica diplomada e golpista por vocação. Juntos criaram empresa. Passaram a fraudar exames, sangue trocado, urina diluída, fezes substituídas por massa de modelar. Um casal feito de miséria e esperteza.

Os negócios floresciam. Oficina cheia, peças compradas de desmanche, carros roubados e desmontados em silêncio, à noite. Exames e diagnósticos forjados na empresa que criara com a esposa. Trabalhadores pagos com trocados e ameaça.

Tudo funcionava, mas a cabeça corria, à noite, no travesseiro, inchada de culpa, embora o pilantra posasse de vestal. Quando dormia, sonhava com o amigo ludibriado e com centenas de pessoas mortas em virtude dos falsos exames e dos falsos diagnósticos. Um dos sonhos se repetia: a oficina em chamas, o nome queimando na fachada, derretendo, escorrendo como graxa quente. Acordava suado. Enxugava a testa, acendia a luz. A mulher dormia de boca aberta, baba escorrendo pelo canto da boca. O silêncio da madrugada pesava mais que a oficina inteira. Quis rezar, mas não lembrava mais palavras. Só insultos e o nome que roubara e as pessoas que matara. O nome não era seu, mas a culpa pela trapaça e pelas mortes estavam presas ao seu currículo.

 

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