O dia em que os santos faltaram ao piquenique – mas a cachaça foi
Fui à belíssima praia de Caraúbas dia desses e lembrei-me de uma história ocorrida há aproximadamente quatro décadas.

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Éramos seis, ou sete, dependendo do nível etílico da contagem: Carlinhos, Eduardo, Henrique, Iorítomo (o Ió), Jaílson (Dadá), Junior (Panela) e eu. Girávamos entre 1984 e 1985, naquela idade perigosa em que o corpo aguenta tudo e a consciência ainda não foi instalada de fábrica, dos 15 aos 18 anos.
Todos bebíamos. Muito. Todos, menos Carlinhos. Carlinhos era o nosso Gandhi: abstêmio, pacífico e sempre usado como depósito humano de contrabando alcoólico.
Éramos meio largados, pouco atentos às grandes causas juvenis da época. Enquanto alguns lutavam por um mundo melhor, nós lutávamos para achar gelo e cerveja e cachaça baratos. Não nos preocupávamos com a opinião alheia. Queríamos viver, e vivíamos como se o fígado fosse um órgão opcional.
O curioso é que, durante a semana, éramos quase cidadãos exemplares: estudávamos, treinávamos, jogávamos futebol e voleibol. Nos fins de semana, mantínhamos a coerência: praia, futebol, voleibol, clubes e boates. Tudo isso irrigado a cerveja, rum, vodca e a sempre patriótica cachaça. Éramos ecumênicos na bebida.
Por isso, fomos solenemente rechaçados pelo Grupo de Jovens de Mirassol, ligado à Igreja Católica. Eles eram regrados. Nós éramos desregrados. Eles cantavam. Nós afinávamos só depois da terceira dose. Ainda assim, o Grupo tinha um ponto fraco: os piqueniques. E todo jovem rebelde tem um talento especial para farejar comida grátis.
O esquema era simples e genial: alugava-se um ônibus com 50 lugares para praias mais distantes. O problema era que nunca conseguiam fechar os 50. Foi aí que entrou Valério Davi (Val), hoje médico. Convencido por alguns de nós, Val resolveu nos dar uma chance.
O acordo foi claro, solene e hipócrita: iríamos, mas não beberíamos. Aceitamos imediatamente, com a sinceridade de quem promete dieta numa pizzaria.
Destino: praia de Caraúbas. Alojamento: casa da família de Isabel, integrante do Grupo de Jovens. No sábado à tarde, depois da tradicional pelada na quadra de Mirassol, fomos ao Nordestão do Cidade Jardim comprar os “comes e bebes”. Sardinha, verduras… e quatro ou cinco burrinhos de cachaça, que na nossa lógica alimentar deviam contar como líquido essencial.
As sardinhas foram preparadas na casa de Ió ou de Henrique, a memória falha, mas o hálito confirma. No domingo, estratégia militar: as bebidas foram escondidas na bolsa de Carlinhos, o único que ninguém suspeitaria. As comidas iam em sacolas visíveis. Nossas bolsas foram revistadas com rigor policial. A de Carlinhos, não. Era o cavalo de Troia abstêmio.
No ônibus, batucada do início ao fim. Chegamos à praia e, para manter a fachada moral, fomos jogar voleibol. Suamos uns 40 minutos sob o sol escaldante, o que nos deu a desculpa perfeita para nos afastarmos “em busca de água”.
Em uma hora e meia, secamos todos os burrinhos de cachaça, comemos sardinhas, farofa e verduras, e voltamos ao voleibol como se nada tivesse acontecido. Exceto por Ió, que, completamente embriagado, executava peixinhos épicos, rasgando o peito na areia grossa como um mártir etílico.
Val nos deu um carão bíblico, digno de Antigo Testamento. Resultado: fomos oficialmente expulsos de todos os piqueniques do Grupo de Jovens de Mirassol.

Imagem feita com auxílio de IA
E assim aprendemos duas lições fundamentais da juventude: 1) promessas feitas antes de um piquenique não resistem a um burrinho de cachaça e 2) sempre escolha bem o abstêmio do grupo.