Conservadorismo e o devoto do santo casamenteiro – quem diria
Uma das coisas mais comuns no debate político e cultural dos últimos tempos é a existência de noções equivocadas a respeito de certos termos e posicionamentos políticos. No tocante a alguns destes conceitos, muitas vezes o embaraço se dá por mera falta de informação. Outras tantas vezes, é a mais pura inocência, ou melhor, preguiça intelectual mesmo. E, em outras circunstâncias, talvez em razão dos dois motivos elencados, junto com uma pitada de maledicência, bem como de uma verdadeira falta de consenso; existe deliberadamente uma aposta na desinformação, a qual, invariavelmente, leva as pessoas a perceberem algumas visões de mundo com uma carga semântica negativa.
A questão é muito simples. Para muitos, o que importa é o resultado, não a verdade dos fatos. Portanto, se é possível ganhar uma parcela da opinião pública, fazendo com que ela seja refratária a uma determinada concepção de mundo, a qual eu e meu grupo defenestramos, sem que seja necessário ter o desgaste de apresentar quaisquer explicações para tanto, por qual motivo eu deveria fazer diferente? Destruir é sempre o caminho mais ligeiro.
Especificamente, o termo sobre o qual o qual percebo mais obscurantismo é aquilo que genericamente denomina-se de conservadorismo. De modo que, para alguns, basta colocar a pecha de conservador em alguém, ou em alguma prática, para que isso já denote algo desagradável, na melhor das hipóteses, quando não monstruoso e reacionário. O conservador é assim alguém que merece ser predicado com os adjetivos menos lisonjeiros que estejam na ponta da língua. Evidentemente, isso se dá porque, a despeito dos esforços que os intelectuais conservadores façam, o conservadorismo é muito mais uma disposição de vida, do que uma ideologia ou doutrina. Muito provavelmente, termos como ideologia ou doutrina, da forma como são usados no debate público, sejam completamente alheios a esta chamada disposição de vida. Diante de um panorama como este, é até compreensível que algumas boas almas, imperceptivelmente, sejam tragadas para o engodo, e abracem, quase que de forma maníaca, uma postura contrária a tudo que se chame publicamente de conservador.
Os autores que tentaram compreender o conservadorismo de maneira honesta são pouco lidos, ou nunca lidos, por uma boa parte dos formadores de opinião. Isso ocorre com Edmund Burke, Russell Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scrutton, ou no Brasil, Gustavo Corção, Bruno Garschagen, Alex Catarino ou Olavo de Carvalho (uma honrosa exceção em se tratando de número de leitores). E convenhamos, na nossa vida ordinária, pelo menos para a grande maioria de nós, não precisamos de reflexões filosóficas sobre nada, sobretudo sobre o que é conservadorismo. As urgências e demandas das pessoas comuns são outras, ainda que intuitivamente conservem seus modos de vida, sem que racionalizem ou verbalizem isso. As pessoas precisam, isso sim, apenas viver e deixar viver. Viver com seus valores, com suas tradições, com sua religiosidade, sua moralidade etc. E a questão é justamente essa. Não existe vida humana, socialmente organizada, sem o mínimo de conservação de valores, tradições, religiosidade ou moralidade. O que os autores mencionados fizeram foi observar agudamente o modo como a vida cotidiana se desdobra e dissertaram sobre isso, tentando explicar os motivos pelos quais não podemos almejar rupturas sociais, ou culturais, drásticas, mas mudanças adequadas às circunstâncias, para que consigamos manter o elã e o tecido social relativamente intactos.
Diante deste panorama não muito alentador, eis que, nos últimos dias, passei por uma surpresa extremamente agradável, que remeteu precisamente a isso sobre o que venho tentando discorrer. O assombro ocorreu-me em um dos lugares mais inesperados, na atualidade, para termos discussões sóbrias sobre o conservadorismo. E, cá comigo, acho que a agradabilidade se deu justamente porque não foi uma discussão ou um debate, mas uma fala, em um ritual de passagem popularmente conhecido como cerimônia de formatura, ocorrida em uma instituição federal de ensino, evento para o qual eu havia sido gentilmente convidado por ex-alunos. E é curioso que, ao mesmo tempo em que nutrimos uma ansiedade saudável para participar deste tipo de comemoração, obviamente devemos agir como diz o ditado popular: “Mantermo-nos como gato escaldado, que tem medo da água fria”. Há que se ter em mente, porém, um outro tipo de expectativa em ocasiões e lugares assim, qual seja: para quem tem o mínimo de bom-senso, é notório nos últimos tempos que nestas cerimônias são um tanto quanto frequentes as explosões verborrágicas pretensiosamente lacradoras, carregadas de jargões vazios e ideológicos. Pululam vídeos na rede de computadores sobre isso. Em sendo esperado tais arroubos, a melhor saída é sempre aquietar-se, acalmar o coração e preparar o espírito antecipadamente. Contudo, na ocasião mencionada, ainda que a principal autoridade presente tenha tentado realizar uma narrativa dentro do espírito do militantismo tosco, impondo a si mesma um processo autofágico de constrangimento, motivado por seus próprios entraves linguísticos e retóricos, terminando, assim, como uma personagem desinteressante, fomos agraciados – pelo menos eu fui, e tenho certeza que várias outras pessoas também o foram – com um momento de pura eloquência, a qual serviu para adoçar ouvidos e almas da audiência presente, com uma retórica eivada de uma certa deferência aos valores de conservação da vida humana mais prementes, que não podemos deixar que se apaguem no nosso dia-a-dia. Arrisco-me a afirmar que o encanto proporcionado pelo belíssimo discurso preencheu prazerosamente cada canto do ambiente onde ocorreu a cerimônia, servindo como um momento de catarse espiritual.
O responsável pela façanha foi um queridíssimo amigo, professor de História, conhecido por ser o Fábio Júnior destas bandas (devoto rigoroso de Santo Antônio). Do alto de seus conhecimentos, proferiu, pasmem!…, um improvisado e cativante discurso de paraninfo, que fez jus àquilo a que se destinava, ou seja, homenagear os formandos. Discurso tal que não precisou de nenhum argumento ideológico ou panfletário, sendo emotivo na medida certa, não sendo açodado e, adequadamente, fez um apelo à tradição e ao amor.
Nosso querido LH (Fábio Júnior potiguar) conseguiu em alguns breves minutos mostrar qual é a importância de se manterem azeitadas as estruturas de nossa de convivência social. Pôs na ordem do dia o cultivo do amor àquilo que nos é verdadeiramente mais familiar. E mais que isso, mostrou que nossa própria vida estará sempre em desequilíbrio, se não mantivermos um flerte fraternal ao nosso lugar, às nossas instituições, aos nossos concidadãos, às nossas tradições, aos nossos valores, aos nossos antepassados e a nossos descendentes. A vivacidade desse amor a tudo que nos é mais caro e próximo não pode deixar, jamais, de ser uma sombra cotidiana, com o intuito de que mantenhamos a chama do passado acesa em nosso presente, guardando cuidado para com todos aqueles que nem chegaram a desfrutar deste mundo ainda.
O discurso de “Fábio Júnior” conseguiu mostrar que o conservadorismo não é uma ideologia, nem busca estabelecer projetos arquitetônicos para a sociedade, provenientes de mentes que se acham “iluminadas”. O conservadorismo representa a manutenção atenta e amorosa de tudo aquilo que vem dando certo. Mudanças ocorrem e são necessárias, mas sem perder de vista um cuidado cético em relação às mesmas, sobretudo àquelas que se propõem messiânicas. O conservadorismo representa o justo freio às ideologias que tentam “consertar” o mundo destruindo o passado.
O objetivo fundamental é deixar claro em nossa mente que devemos refrear nossos anseios revolucionários por mudanças abruptas, posto que não podemos correr o risco de perder nossas referências culturais e morais, que constituem minimamente nossa civilidade. A revolução, quando vier, haverá que ser interna a cada um de nós, de forma que possamos primeiramente amadurecer nossa própria existência. Isso se deve a um simples fato: nós devemos nos moldar ao mundo, sobrevivendo em meio às adversidades, ainda que não sejam desejadas – mas esperadas como certas. Jamais podemos ambicionar, sem que estejamos mentalmente enfermos, que o mundo mude para agradar aos nossos desejos individuais. Isso jamais ocorrerá sem que destruamos as próprias circunstâncias que nos conceberam para que nos tornemos nossa melhor versão. Ao incorporar este amor verdadeiro e a reverência à nossa história individual e coletiva, fica nítido que não somos fruto de um tempo, ou de um grupo identitário específico, mas de toda uma cultura, cheia de percalços e atropelos, que por bem ou por mal – mais por bem, evidentemente – trouxe-nos até aqui.
O mais fervoroso devoto do santo casamenteiro nos mostrou que devemos desconfiar, de forma salutar, da fé que nutrimos em nossa capacidade de conceber utopias, principalmente ao propor soluções para os problemas que não nos concernem diretamente, ou que o fazem apenas de forma marginal. Ele percebeu que a única saída é agir dentro de nossas limitações, ou seja, na nossa proximidade. É uma posição socrática, pois percebe que mais vale reconhecermos humildemente nossa ignorância do que adotarmos a empáfia de nos acharmos conhecedores de tudo. Sendo assim, é melhor duvidar primeiramente de nossas próprias opiniões e sabê-las apenas como aquilo que são – opiniões.
O passado já foi testado, já sabemos o que esperar dele. Portanto, é melhor não perdê-lo de vista. Que lembremos a postura de Nelson Rodrigues quando, ao ser chamado de reacionário, respondeu mais-ou-menos assim: “Sou, sim. Reajo contra tudo que não presta”.
Por tudo isso, resta-nos agradecer e prestar honras ao nosso estimado LH por ter nos presenteado com um discurso tão alentador. Que continue devoto do santo casamenteiro.
Por Luiz Roberto