O exercício profissional da greve

por Sérgio Trindade foi publicado em 29.jun.22

O provérbio romano Audi, vide, tace, si tu vis vivere (in pace) é um conselho que expressa como é possível viver em paz, sem conflito. Em tradução ao pé-da-letra “Ouve, vê e sê discreto e silencioso se queres viver (em paz)”. Pode servir para garantir que as coisas sejam resolvidas sem confrontos acirrados e, também, para sugerir que nos homiziemos no coito do silêncio conivente, passando despercebidos e, portanto, sem sermos incomodados. Nunca fez meu gênero confrontar por confrontar, como também nunca o fez silenciar por silenciar. Não sou de atacar em bando; prefiro o combate solitário, por isso ouço, vejo, não sou discreto nem silencioso e talvez por isso não viva nunca em paz. Ninguém poderá, entretanto, chamar-me de covarde.

O nariz-de-cera acima ficou um pouco longo, então passemos para o essencial.

Sou professor e passei dois anos “afastado” do exercício docente. Dos 24 meses, seis sem trabalhar, apenas fazendo de conta (os seis meses de completa ausência batizei de eclipse pedagógico, afinal eu estava lá, disponível para ministrar minhas aulas, mas encoberto por um manto) e dezoito exercendo o ofício docente no famigerado ensino remoto emergencial. Logo, estava “afastado” de sala de aula.

Houve e há quem justifique a permanência por tão longo tempo (18 meses) do ensino remoto emergencial. Estávamos no olho do furacão pandêmico e qualquer cochilo significaria pôr a vida em risco. Aceito parcialmente o argumento, mas rebato-o dizendo que nós, professores, solicitamos prioridade na fila de vacinação, para que pudéssemos voltar ao ensino presencial. Fomos atendidos para, a seguir, mantermo-nos afastados de lá. Dizíamos que o retorno só seria possível quando os alunos estivessem vacinados.

Quando os adolescentes começaram a ser vacinados, ouvi em reuniões que seria um risco voltar ao ensino presencial porque novas variantes, resistentes às vacinas, estavam circulando e havia relatos de novos casos de Covid, desta vez em vacinados, na Noruega. Fiquei sem entender e fui ver se havia algum bairro, em Natal, com o nome de Noruega, afinal as nossas zelites atuais poderiam estar mimetizando os Albuquerque Maranhão, integrantes das zelites do início do século XX e responsáveis por rasgar ruas e avenidas nas proximidades do Perigo Iminente e batizar os bairros onde elas estavam como Tirol, Petrópolis…

Não há uma Noruega nas imediações de Tirol e Petrópolis, mas não seria possível prever o comportamento do novo e insidioso vírus. Melhor, então, prevenir. As aulas presenciais foram para as calendas e permanecemos no ensino emergencial remoto, que já não era bem ensino (tenho dúvidas se um dia foi) e deixara de ser emergencial para se tornar vício.

Aqui faço um adendo: no modelo adotado, a cada aula ministrada, um professor poderia contar duas e ainda acrescentava mais uma por atividade ou material enviado para o aluno estudar. Em miúdos: uma aula dada e três eram registradas. Chamei (e chamo) o modelo de cinismo pedagógico.

Pois bem, dois anos depois, passando pelas escolas pedagógicas do eclipse e do cinismo, eis que, retornando ao ensino presencial, somos convidados a participar de assembleia sindical e descobrimos que estamos em estado de greve (seja lá o que isto queira dizer) decretado por algo em torno de 40 servidores num universo de aproximadamente três mil.

Foram, repito, dois anos distantes do ensino presencial. E pagos regiamente, sem que deixássemos de receber os nossos salários um mês sequer. O momento atual, de retorno às atividades presenciais, seria de acolher os alunos e verificar as deficiências deles, pois o modelo de ensino remoto emergencial deixou-os ao relento. Mas o cinismo (não confundir com o cinismo pedagógico) prefere manter a ausência.

Como disse acima, não busco confronto por confronto, mesmo porque, como diziam os romanos, Dulce enim etiam nomen est pacis (O nome “paz” é doce por si mesmo). O nome sim, mas nem sempre vivemos só pela paz, porque por vezes os conflitos só são resolvidos com o acirramento deles. Só assim tiramos as vestes do rei, para ficar na imagem construída pelo escritor dinamarquês Hans Christian Andersen.

Os dados estão lançados, ou como disse o imenso Júlio César: Alea jacta est.

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