Santo Anselmo e São Tomás de Aquino e a existência de Deus
Estava dias desses lecionando a disciplina de Epistemologia da Ciência, na instituição na qual trabalho, e fiz referência a alguns filósofos medievais, entre os quais São Tomás de Aquino, para dizer que a ciência moderna não é exatamente uma criação moderna, mas tributária da filosofia antiga e da filosofia medieval e, de passagem, mostrei por que dizia aquilo.
Revolvi aprofundar um pouco minha reflexão e, para tal, recorri a um textinho escrito há um tempo sobre filosofia medieval e que, agora, faço alguns ajustes.
Um dos debates intelectuais mais instigantes do período medieval ocorreu entre os nominalistas e os realistas.
Estes argumentavam que as palavras não são apenas palavras, expressam muito mais que isso; aqueles, por sua vez, rebatiam afirmando que as palavras são apenas isso – palavras.
A este debate deve-se incluir a discussão sobre uma das questões centrais do pensamento medieval, a demonstração racional, logo filosófica, da existência de Deus.
O debate gira em torno das ideias centrais de Anselmo de Aosta e de Tomás de Aquino acerca da existência de Deus.
Anselmo, no seu célebre argumento ontológico, tentou provar, aprioristicamente, a existência de Deus partindo da idéia d’Ele, tal como nos é apresentada pela fé, enquanto Tomás de Aquino sustentava que existe uma Providência, um Deus bom cujos ensinamentos e palavras temos que acolher. À filosofia, procedendo de acordo com a razão, caberia demonstrar a existência e a natureza de Deus. A não aceitação do argumento ontológico de Anselmo é o ponto de partida do pensador italiano.
A denominação argumento ontológico origina-se da tentativa de transpor o campo lógico-semântico para o campo ontológico, ou seja, a existência do ser correspondente a esse conceito. Segundo Anselmo, do conceito de Deus como um Ser perfeito deriva-se a Sua existência e, se alguém entende esse conceito, não pode coerentemente duvidar da existência de Deus.
Apesar de sua estrutura simples, suas implicações são complexas.
O argumento diz que Deus é aquilo que maior não pode ser concebido, mas que é independente da mente.
Segundo Anselmo, em argumentos propostos no Monológio e, principalmente, no Proslógio, o insipiente nega a existência de Deus, mas admite, porém, que existe “na sua inteligência ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na sua inteligência”. A idéia que temos de Deus é a de um Ser perfeitíssimo, completo, conforme expõe Leonel Franca, sem nenhuma necessidade a ser satisfeita. Não poderá sê-lo se não existir, porque “ ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior”, segundo diz, no Proslógio, Anselmo.
A existência em qualquer ser é um grau de perfeição; logo, existir realmente – e não somente na inteligência – é pré-requisito para um ser do qual se diz que é perfeito, como Deus, o ser sem o qual nada existe, nem pode existir que seja maior ou mais perfeito.
Sendo o que existe de mais perfeito, Deus não pode existir somente no intelecto. Logo, o conceito de Deus como um ser perfeito só existe porque Ele existe e, portanto, é perfeito. A Sua existência só poderia ser negada em face da existência de outro ser ainda maior e mais perfeito que Ele, mas então este ser tornar-se-ia Deus, o mais perfeito dos seres.
Em se aceitando o argumento de Anselmo, conclui-se que o insipiente quando pensa em Deus negando-O como existente é insensato e sem nenhum sentido lógico.
Como agostiniano e, portanto, platônico, Anselmo desenvolveu um argumento que procura o âmago, o interior da alma humana, buscando a ideia de Deus, e da ideia deduz a existência d’Ele, pois o que existe é mais perfeito do que o que não existe e, se Deus não existisse não seria perfeito, logo não seria Deus.
Rejeitando o argumento ontológico de Anselmo, pois sendo aristotélico sabia que nada está na inteligência antes de ter estado nos sentidos, Tomás de Aquino julgava impossível demonstrar aprioristicamente a existência de Deus. Para ele, a existência de Deus não poderia ser provada partindo da própria idéia de Deus, concebido como ser perfeito em cuja perfeição estaria incluída, certamente, a existência.
Na Suma Teológica, Tomás de Aquino diz que como não nos é evidente, a existência de Deus só pode ser demonstrada pelos efeitos que produz. Objetivando provar a existência Dele, a posteriori, isto é, partindo da observação e da experiência, ele elaborou as famosas cinco vias de inspiração aristotélica: a do movimento, a da causa eficiente, a da contingência, a do grau de perfeição das criaturas e a da ordem universal.
Vejamo-las:
- Tudo está em movimento, logo o mundo é um constante devir, pois as coisas modificam-se constantemente, eternamente, buscando a perfeição. Se o mundo está em constante movimento, tudo está em potência. Entretanto, existe algo que não se movimenta em busca da perfeição, porquanto já ser perfeito, não é potência e sim ato, e ato puro – Deus;
- Tudo o que existe é causa ou efeito; não existe efeito sem causa. Assim, o que existe tem uma causa exterior a si, que irá produzir um efeito, que será causa de um novo fenômeno e assim sucessivamente. Essa interdependência é a causa eficiente. Mas existe uma causa não causada, a causa pura – Deus;
- O movimento leva as coisas a ser e não-ser; conseqüentemente, as coisas perdem utilidade, tornando-se não necessárias, e sim contingentes. Só aquilo que é absolutamente necessário tem a causa dentro de si, é causa culminante – Deus;
- Existe uma hierarquização de perfeição das coisas do mundo. Esse julgamento (se podemos chamar assim) da perfeitabilidade é feito comparando-se com algo que é total, o perfeito e a verdade em si – Deus;
- As coisas do mundo têm uma finalidade, um fim específico. No entanto, esse fato não pode ser compreendido simplesmente pela casualidade, pois existe uma inteligência abrangente, total, que opera no mundo, especificando o objetivo, o fim, a finalidade das coisas. Essa inteligência é Deus.
Para aceitar as cinco vias que demonstram a existência de Deus, é necessária a convicção de que Ele existe. Essa convicção deve existir por outro caminho que não seja a razão – a fé.
A convivência entre razão e fé sempre foi um problema complexo. Segundo Tomás de Aquino, a teologia é a ciência suprema, sendo a filosofia uma mera auxiliar. A fé é infalível e convive (ou pelo menos deveria) “pacificamente” com a razão.
As provas de Tomás de Aquino para a existência de Deus foram questionadas, sobretudo a partir da Idade Moderna, principalmente em virtude dos pressupostos de que partem, como os conceitos aristotélicos de movimento e finalidade, bem como da existência de um ser perfeito, que não necessita de explicação. Entretanto, sua importância está no novo rumo aberto sobre o tratamento dispensado a essas questões, pois demonstram que não se pode conhecer Deus diretamente e por meio de uma evidência sem passar pelo mundo sensível. Deste modo, o Deus das cinco vias não é a suprema divindade de nenhuma religião específica – é um Deus filosófico.
Os argumentos de Tomás de Aquino admitem uma plausibilidade adicional alcançada pela fé e, portanto, questões de juízo individual. E pressupõem uma cadeia finita de realizações.
Todas precisam da concepção de Deus, tornando-se princípios do que o pensador italiano pretendia provar. Entretanto, os argumentos dele vão de encontro à tese de que só se pode conhecer Deus pela fé, e de que só se pode falar de Deus se já se sabe quem Ele é. Trata-se primordialmente de uma demonstração da existência de Deus a partir da razão natural, conciliando a revelação com a noção de Deus que temos. Assim, conhecemos Deus por seus efeitos, pela sua obra, a Criação, o mundo criado, a Natureza, pois o Criador deixou uma marca na sua Criação. Essa concepção desvenda um novo caminho, por meio do qual filosofia e ciência, juntas, poderão percorrer as veredas da investigação do mundo natural.
Pode-se não gostar do que os caras pensaram e escreveram, mas é impossível não reconhecer que sabiam das coisas.