A Guerra do Fim do Mundo – de Vargas Llosa, o inca que radiografou o Brasil
Parece piada de mau gosto. Um peruano, Mario Vargas Llosa, pega a nossa tragédia mais cabocla – Canudos! – e forja um romance que enterra, com a elegância de um toureiro, toda a ficção brasileira sobre o tema.
A Guerra do Fim do Mundo não é livro. É um tour de force, uma catarse épica que expõe a nossa mediocridade congênita com a precisão de um bisturi suíço. Llosa, esse dandy convertido ao neoliberalismo com cheirinho de sangue latino, viu o que Euclides da Cunha, apesar do genial Os Sertões, ainda turvava com romantismo positivista: o Brasil é um manicômio a céu aberto.
O enredo? O Conselheiro, um messias de botequim de Juazeiro, arrebanha gente no Sertão – jagunços, beatas, ex-escravos mais perdidos que cego em tiroteio – e funda um reino teocrático em Canudos, então o cu do mundo.
Contra eles, a República recém instaurada e instalada, um bando de cretinos fardados e políticos corruptos até a medula, envia expedições que são chacinas anunciadas. É a Idade Média colidindo com uma pseudomodernidade de opereta. Llosa não toma lado! Ele mostra a loucura fanática dos fiéis e a imbecilidade criminosa dos republicanos com igual desdém. É genial. É cruel. É a realidade! É a verdade.
A técnica? O peruano dá um banho. Enquanto nossos romancistas se perdem em prosas chulas ou experimentalismos gratuitos, Llosa maneja a narrativa polifônica como um maestro. Salta do olhar de um jornalista covarde para a alma de um cangaceiro sádico, da visão de um anarquista europeu ingênuo para a mente obscurantista do próprio Conselheiro. A descrição da violência? Brutal. Sem eufemismos piegas. Expõe a carnificina com a frieza de um relatório clínico. É Goya com palavras. Faz Graciliano Ramos parecer ameno. E torna A Guerra do Fim do Mundo um espelho, que reflete o eterno atraso brasileiro, a violência estúpida como solução política, o abismo entre elites deslumbradas e o povo ignorante e explorado.
Llosa, um estrangeiro, capturou a nossa essência trágica e grotesca melhor que qualquer nativo. É um soco no estômago da intelligentsia bacana que ainda acredita em Brasil, país do futuro. Futuro? Com essa incapacidade estrutural para o civilizado? Leia e chore. Ou melhor: leia e deleite-se – e envergonhe-se.
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Descobrir que o Barão de Canabrava, essa criatura ficcional genial de Vargas Llosa, tem raízes no medíocre Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo, é como achar que champagne francês nasce em boteco de estrada. O peruano superou o original. Evidentemente!
Cícero Dantas foi um filhote da Casa da Torre – sim, aquela dinastia de latifundiários agiotas disfarçados de fidalgos, cheirando a pó de cacau e sangue de sertanejo. Nasceu em Caritá, no hinterland baiano, ano da graça de 1838. Estudou Direito em Recife e formou-se para legitimar a grilagem com jargões liberais. Deputado? Senador? Intendente constitucional? Farsa! Era um mandão e um coronel de alpargatas engomadas, recebendo títulos de D. Pedro II por erguer um Engenho Central que escravizava miseráveis. Progresso? Eufemismo para exploração.
Mas ah! Vargas Llosa, ceifando a mediocridade do original, forjou Canabrava: um déspota com verniz de filósofo monarquista. Mentor de cretinos em fraques? Ironista de salão? Arquétipo perfeito da elite latino-americana: fala como Voltaire, age como Átila. E enquanto recita liberalices na capital, açoita o sertão com pistoleiros a soldo. Vê Canudos como ameaça? Claro! Não por ideologia, jamais! Mas porque a fé cega dos jagunços expõe seu poder podre – erguido sobre sangue, osso e mentira.
Vargas Llosa, gênio supremo, usou um fóssil baiano para esculpir a crítica definitiva às nossas elites – com títulos comprados, discursos europeizados e almas de capitão-do-mato. Cícero Dantas foi apenas um barão de terra arrasada. Canabrava é o retrato imortal da hipocrisia que fundou o manicômio chamado Brasil.