O Presidente do livrinho

por Sérgio Trindade foi publicado em 10.abr.20

Eurico Gaspar Dutra foi um militar abnegado que, antes de o Brasil entrar na segunda guerra ao lado dos Aliados, nutriu simpatia pela Alemanha nazista.

Foi, com Góes Monteiro, o alicerce militar do Estado Novo, ditadura implantada por Getúlio Vargas em 1937 e que sobreviveu até 1945.

Deposto Vargas por um golpe de Estado liderado pelos militares, coube a José Linhares organizar a eleição presidencial da qual Dutra saiu vitorioso, derrotando o brigadeiro udenista Eduardo Gomes e o médico comunista Yedo Fiúza.

Os adversários de Dutra, no meio militar e na vida pública, diziam que ele sempre foi extremamente coerente, pois tinha cara de boboca, fama de boboca, falava como um boboca, agia como boboca e era mesmo boboca.

Para Oswald de Andrade, o genenal/marechal/presidente tinha o rosto de um feto sexagenário boiando num frasco de álcool.

Dutra sabia de suas limitações intelectuais e procurou compensá-las com muita disciplina e dedicação, tornando-se, por isso, um bom e respeitado militar, servindo com esmero ao Exército brasileiro e atuando com competência durante os anos que Vargas geriu o Brasil, nos anos 1930-40.

A sua campanha presidencial demorou a decolar, entre outros motivos porque o candidato foi quase proibido de fazer discursos, pois tinha um defeito de fala – trocava o “s” pelo “x”, o que emprestava um ar ainda mais tolo a ele.

O defeito lhe rendeu uma marchinha de carnaval: “Voxê qué xabê./ Voxê qué xabê./ Voxê pixija xabê./Pra que voxê qué xabê?”

O seu mutismo durante quase toda a campanha terminou por lhe render um apelido jocoso: o Catedrático do Silêncio.  

O apoio de Vargas e a atuação das bem azeitadas máquinas partidárias do PSD e do PTB garantiram a vitória de Dutra sobre o seu principal adversário, o “jovem, bonito e solteiro” brigadeiro Eduardo Gomes.

O novo Presidente assumiu num momento de ouro para o país, que acumulara mais de 600 milhões de dólares durante a guerra e estava com as liberdades democráticas restauradas.

Durante o mandato de cinco anos, Dutra jogou quase tudo pela janela, desarranjando as contas públicas, torrando desbragadamente as reservas internacionais na compra de bens de luxo e bugigangas e entregando um país de novo dividido ao sucessor, Getúlio Vargas.

Duas forças impeliam as decisões do Presidente: o livrinho, como ele se referia a Constituição, e dona Carmela, popularmente conhecida como dona Santinha, sua esposa há mais de três décadas.

Foi dona Santinha, contam, que pressionou o marido a fechar os cassinos, segundo ela “antros de perdição e pecado”, destruindo um então florescente e rentável empreendimento de diversões, o teatro de revista.

Há três passagens hilárias, atribuídas ao anedotário político nacional, sobre Eurico Dutra:

1) O então major Castello Branco (futuro Presidente), oficial de gabinete de Dutra, perguntou certa vez ao ajudante de ordens, capitão Fragomeni, se o Presidente estava bem. O capitão respondeu que sim, completando que ele até chegara a entabular uma conversa. Ante o susto de Castello, Fragomeni reafimou: “Conversou, sim. Quando chegamos na altura do Maracanã, ele respirou bem fundo e falou: “Está muito quente hoje.” Castello olhou abismado para o ajudante de ordens e disse: “Nossa! Não acredito. O Presidente não é dado a fazer discursos tão longos de manhã cedo.”

2) Em 1947, o Brasil sediou a Conferência Interamericana. O evento ocorreu no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. O Presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, foi um dos participantes. Do encontro Truman e Dutra nasceu um delicioso trocadilho. Truman dirigiu-se a Dutra e o cumprimentou: “How do you do, Dutra?”. Incontinente, o Presidente brasileiro devolveu: “How tru you tru, Truman?”.

3) O episódio mais engraçado repercutiu por anos no Rio de Janeiro, então capital federal. Durante cerimônia de inauguração de um hospital, Dutra soltou uma bufa-rasga-calças. Todos em volta ouviram e o odor nauseabundo invadiu o ambiente. O constrangimento foi geral e todos ficam sem saber o que fazer, até que o secretário particular do Presidente, Carlos Roberto de Aguiar Moreira, assumiu a culpa: “Presidente, desculpe-me, comi alguma coisa que me fez mal. Acho que foi aquela batata que comprei ontem e ela me causou um desarranjo. Não consegui segurar.” Para recompensar o dedicado auxiliar, Dutra lhe deu um cartório de presente, o que fez vários assessores estrilarem: “Eu devia ter assumido aquilo”. “Por que eu não me adiantei ao Carlos Roberto?”. “Esse cartório podia ser meu”. Daí em diante, sempre que alguém cruzava com Carlos Roberto, dizia admirado: “Está vendo aquele moço ali? Foi ele quem assumiu o pum do Presidente Dutra”.

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