Várias histórias em uma só

por Sérgio Trindade foi publicado em 21.nov.22

Quanto mais se aprofundava a campanha e a pós-campanha deste ano, mais me assaltava a curiosidade e mais eu lia sobre a montagem da chapa presidencial de 1918 e o desenlace da crise que resultou no não-empossamento de Rodrigues Alves e na sua substituição por Delfim Moreira, o seu vice.

Cheguei a escrever (link mais abaixo), certa vez, ainda no início da pandemia, que o Brasil já teve um Presidente da República louco. À época em que fiz o texto muita gente questionava a sanidade mental de Jair Bolsonaro, que parecia se deliciar dando caneladas e cotoveladas em todos, principalmente naqueles que exigiam medidas sanitárias cada vez mais duras para estancar a sangria causada pela doença que assolava o mundo.

Quando a campanha presidencial deste ano foi finalizada, vieram à tona a alheamento de Bolsonaro e começaram (não discuto se é veraz ou não) incertezas acerca do estado de saúde de Lula. Nem mesmo exames feitos pelo ex-Presidente e apontando que o estado de saúde dele é bom, tirando inflamação na laringe, afastaram burburinhos sobre o assunto.

Lula foi eleito liderando uma frente partidária de oposição ao Presidente Jair Bolsonaro.

O Brasil já teve, quando parte do Reino Unido, uma rainha, D. Maria I, louca. Verdade que não governava, pois a Coroa era conduzida pelo seu filho, o príncipe D. João, depois rei com o nome de D. João VI. Depois tivemos dois mandatários (um já morto e outro ainda em atividade política) que, se não eram loucos, tinham sobejos requisitos para tal. E o Brasil já teve, também, um Presidente da República eleito, Tancredo Neves, que escondeu doença até ser internado com complicação que não apenas lhe retardou a posse, mas a inviabilizou por completo.

O único governante declaradamente doido a conduzir os destinos do Brasil foi Delfim Moreira, que assumiu a Presidência da República no lugar do enfermo Rodrigues Alves, que se impusera como candidato presidencial; depois da morte do senador Pinheiro Machado ninguém disputava com ele, Rodrigues Alves, a posição de maior nome da política nacional. O conselheiro tivera, por duas vezes, mandato exitoso à frente do executivo paulista e um como Presidente da República. Era, portanto, um nome que unia praticamente todas as correntes políticas do seu estado, mesmo os mais destacados membros da oposição, e parcelas significativas das forças políticas do Brasil, como registrou o próprio Rodrigues Alves em seu diário pessoal, citado por Hélio Silva no livro Rodrigues Alves/Delfim Moreira (1918-1919): “Durante minha permanência no Rio, de onde vim há dois meses, já se falava muito na escolha do sucessor do dr. Venceslau, e a imprensa se ocupava impertinentemente do assunto. O meu nome andava sendo muito discutido. São Paulo e Minas se haviam entendido para não tratarem do caso senão no tempo oportuno e no melhor intuito. As coisas, porém, se foram precipitando, e os chefes políticos mais graduados combinaram na chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira, devendo, conforme os precedentes, ser aguardada a reunião de uma convenção para a escolha dos candidatos, que deverá prevalecer.”

Delfim Moreira (internet)

Muitos acreditavam que o velho (tinha 69 anos, considerado muito velho naquele período) e alquebrado Rodrigues Alves não terminaria o mandato presidencial. Havia quem dissesse que ele nem assumiria, como expôs, em carta (profética) escrita em janeiro de 1918, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Ministro da Justiça e representante do Rio Grande do Silva no ministério de Venceslau Brás, a Borges de Medeiros: “Aqui ninguém acredita que Rodrigues Alves governe. Prevêem a sua morte antes da posse e, se esta se efetuar, a revolução será imediata.” Gilberto Amado, um dos mais emblemáticos pensadores políticos do Brasil, ecoou esta passagem de maneira brilhante: “Só poderá haver oposição em país em que haja esperança para a oposição. Sem esta esperança, o recurso à revolta, à mazorca à insurreição é inevitável.” Não esqueçamos que eleição, naqueles tempos (em grande medida ainda hoje), era construída e vencida nos bastidores e os insatisfeitos, por estarei alijados do poder e sem qualquer perspectiva de empalmá-lo, recorriam a motins e revoltas para serem ouvidos.

No dia 7 de junho de 1918, a chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira foi escolhida, em convenção, realizada no Senado, como candidatos a Presidente e Vice-Presidente da República. Rodrigues Alves foi sufragado por 244 convencionais e Delfim Moreira por 243. Ali, naquela convenção, estava sacramentada a vitória de ambos. A oposição, como em todas as eleições da República Velha, existia apenas para emprestar ares democráticos aos conchavos urdidos pelos donos do poder. Imediatamente, Rui Barbosa escreveu texto, publicado no jornal O Imparcial com o título Manifesto Sobre a Chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira, no qual, em inconfundível estilo barroco, diz de forma agressiva e pessimista que, no momento de ressurgimento mundial trazido pelo fim da guerra (primeira guerra mundial), o Brasil está encalacrado numa “vazante de mangues descobertos, no empoçamento geral da nação em uma insensibilidade torpe, morta, putrescente” e que, enquanto no mundo caem tiranias, como a do czar e a do kaiser, o que se via aqui era a “nomeação do presidente da República por um ato clandestino do chefe do Poder Executivo”, pois o que fizera o Presidente foi justamente lançar “o lenço à odalisca do seu gosto – inaugurando, para o eleito das suas simpatias, a época das curvaturas servis, das adesões incondicionais, dos negócios clandestinos” e que se opunha a Rodrigues Alves por “seu anti-revisionismo constitucional” e pelo “fato de aceitar uma candidatura gerada nas entranhas da Presidência.” E arremata: “Por nossa desgraça, porém, o honrado cidadão, cujo espírito de viageiro avezado a travessias seguras, não nos quis dar a valia do seu nome em 1910 (…), hoje, adormentado na calmaria dos mares banzeiros, faz-se de volta ao jogo no pego de um chaveco, em que a fortuna de César teria soçobrado.”

Passada a turbulenta fase da eleição, Rodrigues Alves montou o ministério (setembro) enquanto nos bastidores se discutia, dado o agravamento de seu estado de saúde, o possível desenlace, a saber, a impossibilidade de que pudesse assumir. Em novembro já se cochichava que ele talvez não pudesse assumir e aventavam-se duas possibilidades: promover Delfim Moreira a Presidente ou “confiar a Presidência a um pequeno Estado, sugerindo então dois nomes: Urbano do Santos e Epitácio Pessoa.” A situação chegou aí porque os próprios familiares do Presidente eleito diziam que ele “não podia escrever, nem mesmo telefonar” e diminuíam “as esperanças de que pudesse tomar posse a 15”, abrindo de vez a possibilidade para que Delfim Moreira fosse empossado como Vice-Presidente no exercício da Presidência da República.

Rodrigues Alves (eBiografia)

No dia 15 de novembro, na posse de Delfim Moreira foi lida mensagem enviada (mas não escrita) por Rodrigues Alves, na qual está dito que o Presidente eleito não poderia “por motivo de força maior, tomar posse daquele cargo (…) na data fixada pela Constituição”, cabendo a “Delfim Moreira, vice-presidente eleito (…) assumir o exercício da Presidência enquanto durar o meu impedimento.” Daí em diante, Delfim Moreira passou a despachar diariamente na casa de Rodrigues Alves, situada na rua Senador Vergueiro e apelidada jocosamente de Catetinho até que, morto Rodrigues Alves, passou a governador, tutelado por Afrânio de Melo Franco, Ministro da Viação e Obras Públicas.

Delfim Moreira era vinte anos mais jovem que Rodrigues Alves, mas como o Presidente eleito estava doente, vítima de avançado processo de arteriosclerose, mal que já havia se manifestado quando ocupava o governo de Minas Gerais. Segundo Hélio Silva, o senador gaúcho Soares dos Santos, emissário de Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul, assim o descreveu: “Inteligência abaixo do medíocre, e tão incompetente como nulo.”

Apesar dos poucos atributos intelectuais e administrativos, governava Minas Gerais que, juntamente com São Paulo, era (ainda é) antessala da Presidência da República. E iria para o Palácio do Catete, sede presidencial, se a habilidade política de Álvaro de Carvalho (São Paulo), Nilo Peçanha (Rio de Janeiro) e Venceslau Brás (Minas Gerais) não o tivesse demovido do intento, fazendo-o contentar-se em ser companheiro de chapa de Rodrigues Alves.

Louco manso e empossado como Presidente da República, Delfim Moreira debochava de ministros e se vestia a caráter para comparecer a solenidades que não existiam, mas não governava de fato (http://historianosdetalhes.com.br/historia-do-brasil/o-brasil-ja-teve-um-presidente-louco/).

A situação mais próxima desta ocorreu em 1985, quando no dia imediatamente ao de sua posse Tancredo Neves, eleito pelo colégio eleitoral, em 15 de janeiro, foi internado e enfrentou calvário de mais de um mês, sendo substituído inicialmente de forma interina por José Sarney, que depois for confirmado no cargo.

Tancredo e Sarney (Uol)

Situação semelhante, mas não igual.

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