Várias histórias em uma só
Quanto mais se aprofundava a campanha e a pós-campanha deste ano, mais me assaltava a curiosidade e mais eu lia sobre a montagem da chapa presidencial de 1918 e o desenlace da crise que resultou no não-empossamento de Rodrigues Alves e na sua substituição por Delfim Moreira, o seu vice.
Cheguei a escrever (link mais abaixo), certa vez, ainda no início da pandemia, que o Brasil já teve um Presidente da República louco. À época em que fiz o texto muita gente questionava a sanidade mental de Jair Bolsonaro, que parecia se deliciar dando caneladas e cotoveladas em todos, principalmente naqueles que exigiam medidas sanitárias cada vez mais duras para estancar a sangria causada pela doença que assolava o mundo.
Quando a campanha presidencial deste ano foi finalizada, vieram à tona a alheamento de Bolsonaro e começaram (não discuto se é veraz ou não) incertezas acerca do estado de saúde de Lula. Nem mesmo exames feitos pelo ex-Presidente e apontando que o estado de saúde dele é bom, tirando inflamação na laringe, afastaram burburinhos sobre o assunto.
Lula foi eleito liderando uma frente partidária de oposição ao Presidente Jair Bolsonaro.
O Brasil já teve, quando parte do Reino Unido, uma rainha, D. Maria I, louca. Verdade que não governava, pois a Coroa era conduzida pelo seu filho, o príncipe D. João, depois rei com o nome de D. João VI. Depois tivemos dois mandatários (um já morto e outro ainda em atividade política) que, se não eram loucos, tinham sobejos requisitos para tal. E o Brasil já teve, também, um Presidente da República eleito, Tancredo Neves, que escondeu doença até ser internado com complicação que não apenas lhe retardou a posse, mas a inviabilizou por completo.
O único governante declaradamente doido a conduzir os destinos do Brasil foi Delfim Moreira, que assumiu a Presidência da República no lugar do enfermo Rodrigues Alves, que se impusera como candidato presidencial; depois da morte do senador Pinheiro Machado ninguém disputava com ele, Rodrigues Alves, a posição de maior nome da política nacional. O conselheiro tivera, por duas vezes, mandato exitoso à frente do executivo paulista e um como Presidente da República. Era, portanto, um nome que unia praticamente todas as correntes políticas do seu estado, mesmo os mais destacados membros da oposição, e parcelas significativas das forças políticas do Brasil, como registrou o próprio Rodrigues Alves em seu diário pessoal, citado por Hélio Silva no livro Rodrigues Alves/Delfim Moreira (1918-1919): “Durante minha permanência no Rio, de onde vim há dois meses, já se falava muito na escolha do sucessor do dr. Venceslau, e a imprensa se ocupava impertinentemente do assunto. O meu nome andava sendo muito discutido. São Paulo e Minas se haviam entendido para não tratarem do caso senão no tempo oportuno e no melhor intuito. As coisas, porém, se foram precipitando, e os chefes políticos mais graduados combinaram na chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira, devendo, conforme os precedentes, ser aguardada a reunião de uma convenção para a escolha dos candidatos, que deverá prevalecer.”
![](http://historianosdetalhes.com.br/wp-content/uploads/2022/11/delfim_moreira-274x300.webp)
Delfim Moreira (internet)
Muitos acreditavam que o velho (tinha 69 anos, considerado muito velho naquele período) e alquebrado Rodrigues Alves não terminaria o mandato presidencial. Havia quem dissesse que ele nem assumiria, como expôs, em carta (profética) escrita em janeiro de 1918, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Ministro da Justiça e representante do Rio Grande do Silva no ministério de Venceslau Brás, a Borges de Medeiros: “Aqui ninguém acredita que Rodrigues Alves governe. Prevêem a sua morte antes da posse e, se esta se efetuar, a revolução será imediata.” Gilberto Amado, um dos mais emblemáticos pensadores políticos do Brasil, ecoou esta passagem de maneira brilhante: “Só poderá haver oposição em país em que haja esperança para a oposição. Sem esta esperança, o recurso à revolta, à mazorca à insurreição é inevitável.” Não esqueçamos que eleição, naqueles tempos (em grande medida ainda hoje), era construída e vencida nos bastidores e os insatisfeitos, por estarei alijados do poder e sem qualquer perspectiva de empalmá-lo, recorriam a motins e revoltas para serem ouvidos.
No dia 7 de junho de 1918, a chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira foi escolhida, em convenção, realizada no Senado, como candidatos a Presidente e Vice-Presidente da República. Rodrigues Alves foi sufragado por 244 convencionais e Delfim Moreira por 243. Ali, naquela convenção, estava sacramentada a vitória de ambos. A oposição, como em todas as eleições da República Velha, existia apenas para emprestar ares democráticos aos conchavos urdidos pelos donos do poder. Imediatamente, Rui Barbosa escreveu texto, publicado no jornal O Imparcial com o título Manifesto Sobre a Chapa Rodrigues Alves-Delfim Moreira, no qual, em inconfundível estilo barroco, diz de forma agressiva e pessimista que, no momento de ressurgimento mundial trazido pelo fim da guerra (primeira guerra mundial), o Brasil está encalacrado numa “vazante de mangues descobertos, no empoçamento geral da nação em uma insensibilidade torpe, morta, putrescente” e que, enquanto no mundo caem tiranias, como a do czar e a do kaiser, o que se via aqui era a “nomeação do presidente da República por um ato clandestino do chefe do Poder Executivo”, pois o que fizera o Presidente foi justamente lançar “o lenço à odalisca do seu gosto – inaugurando, para o eleito das suas simpatias, a época das curvaturas servis, das adesões incondicionais, dos negócios clandestinos” e que se opunha a Rodrigues Alves por “seu anti-revisionismo constitucional” e pelo “fato de aceitar uma candidatura gerada nas entranhas da Presidência.” E arremata: “Por nossa desgraça, porém, o honrado cidadão, cujo espírito de viageiro avezado a travessias seguras, não nos quis dar a valia do seu nome em 1910 (…), hoje, adormentado na calmaria dos mares banzeiros, faz-se de volta ao jogo no pego de um chaveco, em que a fortuna de César teria soçobrado.”
Passada a turbulenta fase da eleição, Rodrigues Alves montou o ministério (setembro) enquanto nos bastidores se discutia, dado o agravamento de seu estado de saúde, o possível desenlace, a saber, a impossibilidade de que pudesse assumir. Em novembro já se cochichava que ele talvez não pudesse assumir e aventavam-se duas possibilidades: promover Delfim Moreira a Presidente ou “confiar a Presidência a um pequeno Estado, sugerindo então dois nomes: Urbano do Santos e Epitácio Pessoa.” A situação chegou aí porque os próprios familiares do Presidente eleito diziam que ele “não podia escrever, nem mesmo telefonar” e diminuíam “as esperanças de que pudesse tomar posse a 15”, abrindo de vez a possibilidade para que Delfim Moreira fosse empossado como Vice-Presidente no exercício da Presidência da República.
![](http://historianosdetalhes.com.br/wp-content/uploads/2022/11/Rodrigues_Alves-201x300.jpg)
Rodrigues Alves (eBiografia)
No dia 15 de novembro, na posse de Delfim Moreira foi lida mensagem enviada (mas não escrita) por Rodrigues Alves, na qual está dito que o Presidente eleito não poderia “por motivo de força maior, tomar posse daquele cargo (…) na data fixada pela Constituição”, cabendo a “Delfim Moreira, vice-presidente eleito (…) assumir o exercício da Presidência enquanto durar o meu impedimento.” Daí em diante, Delfim Moreira passou a despachar diariamente na casa de Rodrigues Alves, situada na rua Senador Vergueiro e apelidada jocosamente de Catetinho até que, morto Rodrigues Alves, passou a governador, tutelado por Afrânio de Melo Franco, Ministro da Viação e Obras Públicas.
Delfim Moreira era vinte anos mais jovem que Rodrigues Alves, mas como o Presidente eleito estava doente, vítima de avançado processo de arteriosclerose, mal que já havia se manifestado quando ocupava o governo de Minas Gerais. Segundo Hélio Silva, o senador gaúcho Soares dos Santos, emissário de Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul, assim o descreveu: “Inteligência abaixo do medíocre, e tão incompetente como nulo.”
Apesar dos poucos atributos intelectuais e administrativos, governava Minas Gerais que, juntamente com São Paulo, era (ainda é) antessala da Presidência da República. E iria para o Palácio do Catete, sede presidencial, se a habilidade política de Álvaro de Carvalho (São Paulo), Nilo Peçanha (Rio de Janeiro) e Venceslau Brás (Minas Gerais) não o tivesse demovido do intento, fazendo-o contentar-se em ser companheiro de chapa de Rodrigues Alves.
Louco manso e empossado como Presidente da República, Delfim Moreira debochava de ministros e se vestia a caráter para comparecer a solenidades que não existiam, mas não governava de fato (http://historianosdetalhes.com.br/historia-do-brasil/o-brasil-ja-teve-um-presidente-louco/).
A situação mais próxima desta ocorreu em 1985, quando no dia imediatamente ao de sua posse Tancredo Neves, eleito pelo colégio eleitoral, em 15 de janeiro, foi internado e enfrentou calvário de mais de um mês, sendo substituído inicialmente de forma interina por José Sarney, que depois for confirmado no cargo.
![](http://historianosdetalhes.com.br/wp-content/uploads/2022/11/Tancredo-e-Sarney-300x186.jpeg)
Tancredo e Sarney (Uol)
Situação semelhante, mas não igual.