Natal e a gripe espanhola

por Sérgio Trindade foi publicado em 29.mar.20

Natal tinha, em 1918, população de aproximadamente 30 mil habitantes espalhada pelos bairros da Cidade Alta, Ribeira, Rocas, Alecrim, Tirol e Petrópolis.

Poucos devem ter se ligado quando, no final de setembro, o jornal A República deu uma pequena nota sobre uma gripe que matara vários marinheiros da Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG), composta por oito navios.

Dois meses antes a frota passara por Natal. https://tokdehistoria.com.br/2011/03/19/1918-quando-a-gripe-espanhola-atacou-natal/

Em poucos dias, a epidemia tomava espaço cada vez maior nos jornais, à medida que ceifava vidas em vários continentes, ganhando status de pandemia.

Na segunda quinzena de setembro, a chegada de alguns navios de carreira ao Rio de Janeiro trouxe-a definitivamente para o solo pátrio.

Não tardaram a ocorrer as primeiras mortes.

No final de setembro, os primeiros casos foram anunciados em Recife.

Médicos tranquilizavam a população, dizendo que a doença era uma gripezinha.

A imprensa local, que não deu a devida atenção ao que ocorria, foi mudando de posição à medida que as notícias chegadas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Recife davam conta do número de casos, da mortandade e das medidas que as autoridades tomavam para evitar a disseminação do contágio, entre elas a de que fossem evitadas aglomerações.

Arquivo S – Gripe Espanhola Jornal carioca diário fundado em 2 de agosto de 1875 por José Ferreira de Sousa Araújo. Introduziu uma série de inovações na imprensa brasileira, como o emprego do clichê, das caricaturas e da técnica de entrevistas, chegando a ser um dos principais jornais da capital federal durante a República Velha. GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ) – 1918 – edição 270 – pág. 1 – edição 286 – pág. 1 – edição 287 – pág. 1 – edição 291 – pág. 1 – edição 293 – pág. 1 – edição 294 – pág. 1 – edição 301 – pág. 1 – edição 309 – pág. 1

As estatísticas apontam que morreram, até o final de dezembro, em torno de 12 mil pessoas no Rio de Janeiro e 6 mil em São Paulo.

Possivelmente, a moléstia chegou a Natal por meio de pessoas que viajavam com frequência à capital pernambucana.

De Natal, espalhou-se pelo interior do estado, mudando hábitos e costumes e dando vazão a uma onda de boatos. http://www.edufrn.ufrn.br/bitstream/123456789/406/1/A%20GRIPE%20ESPANHOLA%20EM%20NATAL-OUTUBRO%20A%20DEZEMBRO%20DE%201918.pdf

À medida que a doença se alastrava, medidas de prevenção e de combate foram anunciadas pelo governador do estado, Ferreira Chaves, no início de novembro: distribuição de alimentos aos mais pobres, criação de um posto de assistência no bairro do Alecrim, para fornecer remédios e outros itens.

Algumas ações foram anunciadas para, dentro das condições possíveis, dada a escassez de recursos do governo, atender aos pleitos dos municípios do interior.

As medidas não impediram, porém, que o número de mortos aumentasse rapidamente em Natal, com os jornais publicando discreta e diariamente notas de falecimentos.

Os mortos eram quase sempre pessoas das camadas mais baixas da sociedade, com poucas referências aos mortos das classes melhor situadas na escala social.

Medidas profiláticas sérias (maiores cuidados com a higiene pessoal) e outras nem tantas (lavagens intestinais e chás) foram recomendadas.

As estatísticas sobre o número de casos e de mortes em Natal e no interior não são confiáveis. Mas em trabalho que fiz sobre as mensagens enviadas pelos governadores de estado à Assembleia Legislativa, encontrei a que Ferreira Chaves encaminhou em 1919 e na qual destaca que apesar de a doença não ter sido “tão mortífera como em outros lugares”, ela ceifou “muitas vidas preciosas e pesou cruelmente sobre todas as classes da sociedade”.

Em meados de dezembro, o surto de gripe espanhola, depois de atingir 1/3 da população, já não era um problema sério, o mesmo ocorrendo no interior do estado, e o governador suspendeu as medidas de combate à doença.

Na linha de frente do combate à pandemia estiveram os funcionários do atual Hospital Universitário Onofre Lopes (à época Hospital Juvino Barreto), fundado em 1909, na gestão do governador Alberto Maranhão, e o Posto de Assistência do Alecrim, coordenado pelo professor Luís Soares.

O médico Januário Cicco foi o grande baluarte na luta contra a propagação da gripe espanhola em Natal, escrevendo no jornal A República e orientando e coordenando ações junto ao governo do estado para que fosse prestada assistência aos mais pobres. https://www.brechando.com/2020/03/coronavirus-nao-foi-a-primeira-epidemia-que-natal-enfrentou/

As falas de Januário Cicco eram sempre no sentido de evitar aglomerações, melhorar as condições de higiene, de alimentação e do fornecimento de água, principalmente para a população mais carente.

Se o médico e o professor estivessem vivos hoje veriam que, mais de cem anos após a pandemia que matou 50 milhões de pessoas no mundo e quase 300 mil no Brasil, as condições sanitárias e de segurança alimentar no nosso país pouco mudaram, e isso será um ponto negativo neste momento que enfrentamos a pandemia do coronavírus, que exige esforços semelhantes aos empreendidos para combater a gripe espanhola, em 1918.

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