Europa pós-napoleônica com Napoleão
Não existe condicional quando se avalia o passado, por uma razão muito simples: o passado aconteceu. Logo, não há como mudá-lo.
Mas é impossível resistir a divagações afirmativas como as que apregoam que o Brasil seria rico tivessem permanecido holandeses ou franceses, e não portugueses, como nossos colonizadores ou que os Estados Unidos não teriam se atolado no Vietnã, caso o presidente John Kennedy não tivesse sido alvejado por um atirador solitário e certeiro alojado num depósito de livros na cidade de Dallas, Texas ou que a Nova República teria destino mais nobre não tivesse Tancredo Neves sucumbido a uma doença no aparelho digestivo ou, ainda, que 1964 não teria ocorrido se Vargas tivesse resisto aos golpistas uma década antes ou Jânio Quadros não tivesse renunciado poucos meses após assumir a Presidência da República.
As proposições acima não se sustentam a um leve exame. França e Holanda colonizaram territórios no continente americano e os resultados foram muito ruins para os colonizados e o presidente Kennedy foi, em parte, um dos grandes responsáveis pela presença militar norte-americana no sudeste asiático; Tancredo Neves, timoneiro da travessia inicial do regime autoritário para o regime democrático, estava tão amarrado aos acordos feitos para ganhar a eleição no colégio eleitoral quanto José Sarney, Vargas não teve condições politicas e militares de sustentar e, mesmo que se mantivesse, o final de seu governo seria de crises sucessivas. A renúncia de Jânio Quadros, homem de temperamento instável, apenas precipitou a falência da estrutura política nascida no início dos anos 1930 e que, esgotada, caminhava para o fim.
Andei lendo nas últimas semanas – por prazer, porque tenho feito muitas outras por obrigação e necessidade acadêmica – algumas preciosidades sobre a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte. Três assuntos me deixaram extasiados: Charles Maurice de Talleyrand (1754-1838), um dos homens de Estado mais pragmáticos, fascinantes e controversos da história francesa e europeia, a presença dos exércitos napoleônicos em território português e um texto que levanta a hipótese de vitória de Napoleão Bonaparte, na pequena vila belga de Waterloo.
Waterloo foi o fim da linha para Napoleão Bonaparte, corso que ascendeu de forma meteórica no comando do exército francês, pois granjeara fama e prestígio pela destacada performance nas batalhas da Revolução Francesa.
De início, Napoleão foi um agente dos ideais revolucionários, mas logo a cobiça lhe tomou a alma e o corpo. Empalmou o poder em 1799, autoproclamou-se imperador alguns anos depois e estendeu os seus tentáculos por vários reinos europeus.
Para sobreviverem, muitos países se uniram contra ele.
No dia 15 de junho de 1815, imensos contingentes do outrora rígido e disciplinado exército napoleônico retirava-se em desabalada carreira, justamente quando estavam derrotando os ingleses, comandados pelo duque de Wellington. A vitória parecia líquida e certa, mas as tropas prussianas, formadas por mais de 80 mil soldados, flanquearam o exército francês, iniciando a série desastrosa de Napoleão.
Na batalha, foram mortos mais de 30 mil franceses e pouco mais de 7 mil foram feitos prisioneiros, encerrando a vitoriosa carreira do brilhante general, do estrategista fantástico e do homem de Estado de visão superior (ainda que liberticida), depois aprisionado num rochedo no meio do Atlântico Sul (ilha de Santa Helena), onde veio a morrer em circunstâncias nunca inteiramente esclarecidas.
Até hoje pairam dúvidas sobre a causa da morte: problemas no aparelho digestivo ou envenenado pelos ingleses?
Assisti certa vez a uma palestra sobre a possível participação de Napoleão na Revolução Pernambucana de 1817. Em dado momento, o palestrante afirmou que os revolucionários pretendiam resgatá-lo para que comandasse as tropas rebeldes. Pelo meio da fala, fez algumas divagações e lembro bem de uma: tivesse Napoleão vencido da batalha de Waterloo, a guerra se estenderia por um bom tempo, pois ele teria de lidar com os exércitos austríacos e russos que invadiram a França com mais de 700 mil soldados. E ainda existiam prussianos e outros descontentes com o imperador francês. Ou seja, a Europa certamente seria inundada por sangue de várias nacionalidades, as feridas seriam imensas e difíceis de cicatrizar.
Além dos impactos militares, o prolongamento dos conflitos napoleônicos e o consequente banho de sangue ainda traria uma série de efeitos colaterais, alguns gravíssimos e que teriam repercussão pelos anos afora.
Mesmo que a vitória garantisse um aumento do prestígio de Napoleão Bonaparte junto aos franceses, seria difícil para ele garantir a presença do seu exército na Europa, muito em virtude de sua atabalhoada política de conquista e suas intervenções na política interna dos países conquistados. Uma das mais danosas à sua imagem era a substituição dos governantes locais por pessoas a ele vinculados e, algumas vezes, por familiares próximos – irmãos e outros parentes tornaram-se reis pela Europa.
Muitos desses atos políticos de Napoleão abalaram enormemente o seu prestígio junto à população local e um indício disso está no fato de que, ao retornar do exílio em Elba, ele permaneceu apenas cem dias no poder, quando tentou empreender novas aventuras militares e foi abatido no início da movimentação.
O mais provável seria a formação de uma confederação de nações dirigida pela França, cenário que ameaçaria significativamente a predominância da Inglaterra, então a grande potência política, econômica e militar do mundo, visto que a estratégia dos bloqueios continentais implementada pelo imperador francês para sufocar economicamente os ingleses muito possivelmente seria estendida e isso impediria a comercialização das mercadorias industriais britânicas.
Fragilizada a Inglaterra, a França garantiria a hegemonia na Europa e disputaria a liderança mundial com o país dirigido pela rainha Vitória, conferindo ao idioma e à cultura franceses alcance igual ou próximo ao que idioma e cultura ingleses tiveram no decorrer da história.
Certamente também haveria atraso no desenvolvimento científico, tecnológico, industrial e comercial desencadeado durante todo o século XIX, pois os recursos humanos e materiais seriam mobilizados, durante longo tempo, para a guerra. E findo o conflito, para o processo de reconstrução, cuja consequência seria desalentadora para a civilização ocidental, pois seriam décadas perdidas num dos momentos mais profícuos da civilização ocidental.