Portugal, o infante D. Henrique e Pedro Álvares Cabral (2)
Descobrir a existência do paraíso era um anseio coletivo entre os homens medievais, quase todos profundamente envolvidos pela visão católica de mundo e, portanto, sedentos por buscar a salvação da alma, que poderia ser alcançada após o juízo final ou por algo a ser desfrutado aqui na Terra. Isso explica, em grande medida, a sanha quase fanática em procurar objetos e lugares sagrados, quase sempre só alcançáveis por meio de peregrinações que levassem a perigos e privações, pois desta forma estariam eles se aproximando do sofrimento que Jesus Cristo experimentou.
O primeiro desses impulsos mais grandiosos ocorreu entre os séculos XI e XIII, quando os europeus resolveram se dirigir à Terra Santa, com a justificativa de libertá-la dos infiéis muçulmanos, evento que ensejou o nascimento das Cruzadas
Nascida como expedições militares e religiosas, as Cruzadas tiveram profundo impacto econômico e político sobre o mundo europeu, apressando o fim do feudalismo; libertar a Terra Santa era uma das bases do movimento cruzadista, mas havia outros – alguns religiosos e outros laicos/profanos, entre os quais podemos destacar: a tentativa do papado de unir a Igreja Ocidental e a Igreja Oriental, separadas desde 1054, quando houve o Cisma do Oriente, a tentativa dos nobres europeus de se apropriarem de terras no Oriente, o interesse de algumas cidades comerciais europeias, principalmente as italianas, em formar e consolidar entrepostos de produtos orientais e em possibilitar a abertura do mar Mediterrâneo ao comércio, entre outros.
A primeira Cruzada nasceu após, segundo Edward Burns, no primeiro volume de sua História da Civilização Ocidental, “um pedido de ajuda, em 1095, do imperador bizantino Aleixo Comnemo”, que tinha pretensões de reaver “territórios bizantinos na Ásia Menor, perdidos pouco antes para os turcos”. Como mercenários ocidentais eram usualmente usados “como tropas auxiliares”, o papa Urbano II, um discípulo de Gregório VII e homem de vasto conhecimento e competência, aceitou o pedido do imperador bizantino que, surpreso, constatou que recebera “não apenas uma simples ajuda, mas uma cruzada, constituída por “um enorme exército de voluntários, cuja meta era arrancar Jerusalém das mãos do Islam”, projeto acalentado por Gregório e que fugia aos postulados pacifistas do cristianismo primitivo. Ora, Santo Agostinho e São Gregório formularam “teorias que justificavam guerras religiosas”, mas somente no século XI elas foram postas em prática, quando “Gregório VII obteve apoio papal para a conquista normanda antes mesmo de se tornar pontífice, e tanto ele como os papas por ele influenciados abençoaram campanhas cristãs contra muçulmanos na Espanha, contra gregos na Itália e contra eslavos no leste da Alemanha”, todas escoradas no princípio “de impor a ‘ordem correta no mundo’.”
Ainda que o movimento cruzadista tenha atuado de forma brutal, com os cruzados dando, conforme apontam estudiosos de história como Burns, “pasto à sua ferocidade”, massacrando moradores muçulmanos indefesos de cidades, fazendo o mundo muçulmano “desembocar em longos séculos de decadência e de obscurantismo”, enroscando-se em si mesmo, tornando-se “friorento, defensivo, intolerante, estéril”, em atitudes que tornam-se mais graves e agudas “à medida que prossegue a evolução planetária, em relação à qual ele se sente marginalizado”, conforme expõe Amin Maalouf, em As Cruzadas vistas pelos árabes, é certo que, como aponta Burns, depois de séculos “na defensiva contra o Islam”, o mundo ocidental cristão “conseguira investir contra um centro do poder islâmico” e numa “vitória notável ajudou também a tornar o século XII uma época de extraordinário otimismo”, ajudando “a alargar os horizontes ocidentais”, adquirindo “uma nova visão das coisas” e “a abrir o Mediterrâneo oriental ao comércio do Ocidente”, com as cidades italianas de Gênova e Veneza começando “a dominar as atividades mercantis naquela área, ajudando assim a promover a prosperidade ocidental como um todo”. As Cruzadas também criaram a necessidade de transferir dinheiro a longas distâncias, o que estimulou “experiências em técnicas bancárias”, abriu “o precedente de tributar o clero para custear as cruzadas não foi só aproveitado rapidamente pelas monarquias ocidentais, como também estimulou várias formas de tributação nacional. Mais que isso, o simples ato de se organizar um país para ajudar a financiar uma cruzada real, levantando-se fundos e suprimentos, representou estímulo importante para o desenvolvimento de instituições administrativas eficientes nas incipientes nações-estados”.
A chegada dos portugueses ao território brasileiro, em 22 de abril de 1500, pôs em confronto duas culturas diversas. Por isso mesmo, a história dos primórdios do Brasil opõe igualmente duas visões igualmente conflitantes e, às vezes, excludentes. Uma toma como referência a visão dos indígenas e outra, a dos conquistadores portugueses, resultando no seguinte dilema: o Brasil foi descoberto ou conquistado?
É impossível discorrer sobre a história do Brasil sem lançar luz sobre como os portugueses por aqui chegaram, mas também é impossível fazê-lo sem que entendamos alguns fatos que ocorreram na Europa a partir do século XIV, quando a economia europeia passava por um processo de intensificação das relações comerciais e a classe de mercadores (burguesia) consolidava-se como resultado da intensificação do comércio que se processava em todo o continente europeu.
Paralelamente, o comércio das especiarias orientais (cravo, canela, pimenta, noz-moscada, seda, etc), largamente apreciadas na Europa, vivia um momento de grandes possibilidades de expansão, mas com um gargalo que o ameaçava, visto que comerciantes genoveses e venezianos monopolizavam-no, obtendo lucros extraordinários, conforme expõe Burns: “O comércio veio a ser incrementado de muitas maneiras diferentes. A principal foi o comércio cotidiano feito em feiras locais, onde servos ou camponeses livres vendiam seus excedentes de grãos ou talvez algumas dúzias de ovos. Entretanto, com a especialização crescente, produtos como vinhos ou algodão eram às vezes levados a grandes distâncias. Rotas fluviais e marítimas eram usadas sempre que possível, mas o transporte por terra era também necessário, e veio a ser fomentado por aperfeiçoamentos na construção de estradas, pela adoção de cavalos e mulas de carga e pela construção de pontes. Enquanto os romanos só estavam interessados nas comunicações por terra, as populações medievais, a partir do século XI, concentraram-se no transporte terrestre, a ponto de se tornarem muito mais capacitados a manter um vigoroso comércio por via terrestre. E isso não significa que tenham desprezado as comunicações pelo Mediterrâneo. Pelo contrário, também a partir do século XI, começaram a transformar o antigo “lago” romano numa via de extenso comércio marítimo que se estendia a distâncias mais curtas e mais longas do que antes. Entre 1050 e 1300, as cidades-estados italianas de Gênova, Pisa e Veneza libertaram grande parte do Mediterrâneo do controle muçulmano, deram início ao monopólio do comércio em águas antes dominadas pelos bizantinos e começaram a estabelecer, em entrepostos no Mediterrâneo oriental, um florescente comércio com o Oriente”.
Durante grande parte da Idade Média, a Europa estava politicamente dominada pelos senhores feudais, em sua maioria nobres que possuíam grandes extensões de terras. Os reis não tinham poder de fato, funcionavam quase como elementos de decoração na paisagem política europeia. Já a partir do século XIII, a burguesia, por razões econômicas, aproximou-se do rei com o intuito de combater a nobreza feudal. Esta união permitiu, mais à frente, o surgimento dos Estados Nacionais. A paisagem econômica e política da Europa foi modificada e Portugal foi vanguarda nesse processo e, por isso, foi também vanguarda nas experiências náuticas que, no limite, abriram o caminho direto, sem intermediários, para as Índias, a terra das especiarias.
A história portuguesa é uma síntese da história da península ibérica, povoada inicialmente pelos iberos e posteriormente pelos ligures e celtas, de que se originam os celtiberos, aos quais se misturaram os fenícios, que organizaram feitorias no litoral ibérico do mar Mediterrâneo, no século XII a. C, como depois o fizeram os gregos no século VII a. C. Os cartagineses herdaram o espólio grego e fenício, apossando-se de boa parte da Ibéria, muito rica em minerais, e foi dali que partiu Aníbal, no século III a. C., para combater os romanos, numa luta que terminou com a anexação da Espanha como província romana.
Durante longo período, segundo Hélio Vianna, a Ibéria esteve subordinada aos ditames de Roma, tornando-se “obediente a normas jurídicas, possuindo vias de comunicação, serviços públicos, templos, monumentos, etc” e, ainda mais importante, instaurando “definitivamente a vida municipal”, processo que se complementa quando do processo de cristianização da região, já nos primeiros séculos de nossa era, “apesar das perseguições que alcançaram o seu território, determinadas por alguns imperadores romanos”. Contra o poder de Roma se insurgiram os lusitanos, liderados por Viriato (século II a. C.),
No século V a. C., acentuaram-se as invasões germânicas, cuja consequência foi incorporar novos aspectos à vida peninsular. Por lá passaram vândalos e alanos, estes expulsos e aqueles estabelecidos na África. Instalaram-se na região suevos e principalmente visigodos, estes convertidos à fé cristã, porém divididos por heresias. Entre os séculos V e VII, os visigodos consolidam o seu domínio na Ibéria, só ameaçado no início do século VIII, quando os árabes, em processo de expansão imperialista, conquistam toda a península ibérica, donde foram expulsos somente no final do século XV, numa luta que ensejou a formação dos reinos português e espanhol.
Mas aí é outra história.