Brasil: Estado do Despautério – 1
O Brasil é um país que nunca decepciona quem espera o pior. Ele – o pior – está sempre por acontecer. O serviço público, por exemplo, é uma dessas instituições que conseguiram se reinventar ao longo das décadas – não para ficar mais eficiente, mas para descobrir novas formas de ser ineficiente e de esfolar, passando-se por bonzinho, o contribuinte. É um gênio da autossabotagem, capaz de transformar qualquer boa intenção em um labirinto de carimbos, memorandos, ofícios e reuniões sobre reuniões.
Quando voltei ao serviço público, em 2006, depois de dez anos na iniciativa privada, eu ainda tinha uma pontinha de esperança. Achava que, talvez, a engrenagem tivesse melhorado. Engano meu: era o mesmo teatro kafkiano, mas com cenário reformado, elenco mais inchado e discurso calibrado para engrupir incautos. Com quase quarenta anos, eu não poderia me inserir na categoria dos incautos, mas seguia meio trouxa, crendo, embora não totalmente, em utopias regressistas.
O cidadão-contribuinte, aquele ser mitológico que, segundo a Constituição – cognominada cidadã, mas que de cidadã pouco tem – deveria ser a razão de existir do serviço público, na verdade é um figurante irrelevante. A verdadeira plateia – e também os protagonistas – são os próprios servidores. É um espetáculo de e para eles mesmos.

Imagem feita com auxílio de IA
Por uns cinco ou seis anos, assisti a obras surgirem sem qualquer racionalidade técnica. Algumas eram construções que nasceram mortas, prontas para se tornarem elefantes brancos de concreto, criados para satisfazer a vaidade de gestores e a fome orçamentária de empreiteiros amigos e de políticos mais ainda. Terrenos eram comprados por valores obscenos, não para construir nada útil, mas para acumular mato e garantir que uns poucos privilegiados pudessem trocar o carro no fim do ano ou adquirir a tão sonhada casa de praia ou o apartamento novo.
E não é impressão. Segundo dados do Tesouro Nacional, em 2023, o Brasil gastou mais de R$ 1,4 trilhão com a folha de pagamento e benefícios de servidores ativos e inativos nos três níveis de governo. É mais do que se gasta em saúde e educação somadas. E não é só isso. Estudos do Banco Mundial indicam que o Brasil tem uma das maiores proporções de gastos com pessoal no mundo, chegando a 13% do PIB – mais do que a média da OCDE, onde países com serviços públicos realmente funcionais gastam menos. Ou seja, é como se pagássemos preço de champanhe francesa para beber água de torneira enferrujada.
O empreguismo é o esporte nacional. No Brasil, não se cria emprego, cria-se cargo, sinecura… Para cada função, inventa-se um título, um gabinete, um brasão e, claro, um salário. Em muitas repartições, há mais gente do que trabalho. E quando não há nada para fazer, inventa-se um grupo de trabalho (GT) ou uma força-tarefa (FT). Em tese, para resolver problemas; na prática, para gerar relatórios que ninguém lê e justificar diárias e viagens. A famosa Lei de Parkinson – aquela que diz que o trabalho se expande para preencher todo o tempo disponível – parece ter sido escrita depois que o seu autor, Cyril Northcote Parkinson, passou uma temporada no serviço público brasileiro.
A ineficiência não é acidente, é método. Uma década depois de minha volta, presidindo uma simples comissão de assessoramento, vi o circo se repetir. Pressões para favorecer A ou B, tentativas de ingerência política em decisões técnicas, documentos adulterados com a mesma naturalidade de quem imprime um boleto. Processos sumiam ou eram “esquecidos” estrategicamente, conforme a conveniência dos donos do pedaço. Denunciar qualquer uma dessas artimanhas não era coragem, era suicídio profissional. A recompensa para quem ousava abrir a boca não era reconhecimento, era isolamento e, às vezes, perseguição.
Enquanto isso, gestores se especializavam em nada fazer. Suas maiores preocupações: reservar púlpito para o próximo discurso, organizar o trenzinho eleitoral interno e cultivar aquela velha política de tapinha nas costas. Os que insistiam em trabalhar de verdade eram tratados como vírus a serem contidos. E, como toda boa má burocracia, há sempre um verniz de solenidade. O atraso é mascarado com linguagem rebuscada, as decisões ruins são embaladas em relatórios coloridos e as omissões são batizadas como “respeito ao devido processo”.
A cereja do bolo é que, mesmo com toda essa engrenagem emperrada, sempre há espaço para mais gente. O Banco Mundial aponta que o setor público brasileiro é, proporcionalmente, um dos mais inchados do planeta. Não porque temos mais professores ou médicos – ao contrário, faltam esses profissionais onde eles são mais necessários –, mas porque há excesso de cargos de confiança, assessores, diretores e subdiretores. É um ecossistema que se retroalimenta: quanto mais gente, mais reuniões; quanto mais reuniões, mais justificativa para contratar mais gente.
O resultado prático é um serviço que não serve, um Estado que não governa e uma máquina que só funciona para manter a si mesma. No meio disso, o cidadão que paga a conta continua esperando – na fila do SUS, na fila do INSS, na fila para qualquer coisa. O Brasil não é um país de filas; é um país que vive para mantê-las. Afinal, sem filas, como mostrar que o serviço público está funcionando a todo vapor?
E, claro, há o detalhe sórdido: todo esse inchaço não se traduz em eficiência. Pelo contrário, índices internacionais como o Government Effectiveness Indicator, do Banco Mundial, colocam o Brasil atrás de países que gastam menos da metade com o funcionalismo. É como se tivéssemos comprado uma Ferrari e recebido, na entrega, uma Brasília 1976, sem freio e com motor e caixa de macha bichados.
Talvez o mais triste – ou o mais engraçado, dependendo do ponto de vista – seja que nada disso é novidade. Desde a República Velha, passando por todas as nossas crises, golpes e redemocratizações, a lógica é a mesma: quem chega ao poder não quer consertar a máquina, quer aprender a dirigi-la para proveito próprio. E quem já está lá não quer que nada mude, porque qualquer melhora real implicaria em mais trabalho e menos benefícios e privilégios.
No fim das contas, o serviço público brasileiro é como aquela peça de teatro ruim que só continua em cartaz porque o elenco inteiro é formado por parentes do dono do teatro. O público vai embora insatisfeito, mas a bilheteria está garantida, não pelo ingresso mas pelo orçamento público. E enquanto houver dinheiro para sustentar esse espetáculo, a peça continuará, noite após noite, até que um dia, talvez, a plateia canse e derrube o palco. Mas, até lá, seguimos no nosso papel: pagando, esperando e fingindo que acreditamos na próxima promessa.