Vaqueiros e cantadores
São doces as lembranças de minha infância passada em Florânia, cidadezinha encravada no pé da Serra de Santana, distante 240 km de Natal.
Brincar de roladeira, guidão, polícia-e-ladrão, esconde-esconde, soltar pião e andar de bicicleta, ir a pé ou no Jeep de meu pai até o sítio no qual viviam os meus avós maternos, Joaquim Bezerra (Quinca) e Luiza Bezerra para tomar banhos de açude, chupar azeitonas embaixo do pé, beber leite de vaca tirado na hora, comer coalhada e, andando mais um pouquinho, numa propriedade vizinha, hoje às margens da BR 226, entre Florânia e Jucurutu, comer raspa de queijo diretamente dos tachos são algumas das mais marcantes.
A memória é a presença do passado, uma construção psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado. Nem sempre é somente aquela do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Maurice Halbwachs, estudioso do tema, diz que toda memória é “coletiva”.
Peter Burke cria, ao analisar a relação entre Memória e História, a expressão “história social do lembrar”. Para ele, a memória social e a memória individual são seletivas e maleáveis, sendo necessário “compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade”.
O Brasil é um país de desmemoriados, quando o assunto é politica, com brechas insondáveis entre o nosso passado e o futuro. Ao indicar a existência de tais brechas entre o passado e o futuro, um espaço e um tempo no qual as antigas referências estão esgarçadas e dissolvidas em memórias oficiais sem sentido, a pensadora alemã Hannah Arendt mostra a situação atual da condição humana, na qual existe um bloqueio no acesso aos “tesouros” do passado e da tradição, pois não recebemos de nossos antecessores herança alguma que pudesse nos legar seus conhecimentos.
Assim exprime Arendt o fenômeno: “Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição — que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor — parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”.
Câmara Cascudo reconstitui, em Vaqueiros e Cantadores e no Dicionário do Folclore Brasileiro, as festas de vaquejada dos séculos XVII a XIX como uma data festiva, a “mais tradicional do ciclo do gado nordestino”.
Não custa lembrar que o foi gado criado solto nos campos sertanejos. A festa da vaquejada, para mestre Cascudo, era uma exibição “de força ágil, provocadora de aplausos e criadora de fama” dos vaqueiros, diretamente vinculada ao trabalho de divisão (apartação).
Com o tempo, passou-se a fazer em público, nos pátios das fazendas, a técnica utilizada nas várzeas para recolher os animais ariscos que escapavam e disparavam pela caatinga. Retirada deste passado histórico transformado em memória pelos caminhos da oralidade, a técnica tradicional nordestina da derrubada do boi pela cauda é trazida para o presente e movimenta muitos municípios do interior do Nordeste desde meados do século XX.
A festa (re)surgia, demonstrando a sua já inconteste importância, pois era agora fonte geradora de renda, movimentando a economia das cidades, colocando-a em evidência na época do evento.
Frequentei quando criança várias vaquejadas, ali pelo início dos anos 1970, as vaquejadas no sítio Santa Rita, em Florânia, no qual residam os meus avós. À época, o sítio fazia parte das terras de Bernardo Bezerra, tio de minha mãe, e era administrado pelo meu avô Quinca Bezerra.
A cavalo ou a pé, de carro (caminhões, camionetes, jeeps e rurais) e bicicletas as pessoas se dirigiam à Santa Rita para participar os festejos.
Eu passava horas andando, com o meu primo Neto Bezerra, hoje presidente do Sindicato dos Industriários do Rio Grande do Norte, em meio às barracas que se espalhavam à margem do pátio e que vendiam comidas típicas do sertão (picado de carneiro ou de porco, favada, maxixada, tripa de porco assada) e bebidas para todos os gostos (cachaça, conhaque, cerveja).
A atração mesma, para nós, meninos buchudos, eram os vaqueiros, os veteranos e os noviços, preparando-se para “pegar o boi”.
Espetáculo à parte, hoje reconheço, eram os cantadores de repentes, dedilhando as violas e soltando a voz numa alegria incontida, e os aboiadores – no caso o “aboio cantado, aboio em verso”, para diferenciar do “aboio”, como a eles se refere Câmara Cascudo.
O aboio é um canto melódico e, diz Cascudo, tristíssimo que impressiona pela dor que expressa, “um lamento lançado ao sol moribundo, como se imprecasse a sua luz que fecundava a terra e que depois a ressequia. Recordava o sofrer angustioso das retiradas, quando faiscava a luz da madrugada, e a levada dos retirantes, sem pão, sem lar, sem descanso, nua, esfarrapada, doente, cambaleando procurava o caminho de uma natureza mais clemente, das terras melhores, de um céu mais amigo. Desenrolava-se no ar a sonoridade doentia do aboio”.
Recuperar este passado não muito distante das vaquejadas floranienses é dívida que as gerações que a viveram têm com o passado. Esquecê-lo denotará um lapso da memória pr’aqueles que deveriam herdá-la e pelos atores e testemunhas das ações passadas. Mas para que o presente possa usufruir dessa herança do passado é preciso que a memória seja articulada e retomada, com o objetivo de que se construa uma história e, dessa forma, faça-se uso do que se perdeu nas brumas do tempo.
Cabe a todos os que viveram o período elaborar uma arqueologia da memória, esforço para que não se deixe esvanecer aquilo que foi vivenciado. Uma tarefa para todos – autoridades, mídia, estudiosos e família.