A origem do cogito cartesiano

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.maio.21

Poucas coisas são tal maltratadas, em filosofia, quanto o cogito de René Descartes, filósofo francês que viveu entre os séculos e XVI e XVII.

Mesmo quem não sabe quem é Descartes ou quem nunca nada leu dele ou sobre ele, já ouviu a famosa expressão Penso, logo existo (Cogito, ergo sum). Antes de prosseguir, um adendo: Cogito, ergo sum é traduzida como Penso, logo existo. No entanto, a tradução literal seria Penso, logo sou.

René Descartes

Órfão ainda criança, Descartes, de compleição física frágil, gozou, quando estudante em colégio jesuíta, no qual vigorava o método de ensino escolástico, de alguns privilégios que lhe permitiram dedicar-se a inúmeras leituras, e daí começar a questionar os dogmas que eram ensinados. A matemática passou a ser para o menino a única área do conhecimento ensinada de maneira correta; as demais, pensava, resvalavam em muitas incertezas.

A escolástica estava menos comprometida com o conhecimento e mais com a tentativa de harmonizar fé (herdada da mentalidade platônica) e razão (herdara do aristotelismo). Não havia grande espaço para a dúvida; prevalecendo invariavelmente o argumento de autoridade. E é justamente aí que Descartes empreendeu o seu maior e melhor combate ao longo de sua vida, duvidando de todas as certezas que tivera até então.

Descartes finalizou, em 1633, o livro O Mundo ou Tratado da luz, que apresentava as principais doutrinas de sua física mecanicista (estrutura da matéria, leis do movimento, etc). Havia nela, além de ideias revolucionárias sobre a mecânica do sistema solar, a semente das ideias que o pensador desenvolveu, com mais acurácia, posteriormente, como a de que a construção do mundo, por cada sujeito, ocorre pelo rompimento com as certezas previamente estabelecidas. Há uma passagem elucidativa n’O Mundo ou Tratado da luz, sobre isso: “Como me proponho a tratar aqui do tema da luz, a primeira coisa que gostaria de vos advertir é que pode existir uma diferença entre o sentimento que nós temos da luz, isto é, a ideia que se forma em nossa imaginação mediante o concurso de nossos olhos, e aquilo que está presente no objeto – mais precisamente na chama e no Sol – e que produz em nós esse sentimento, para qual dá-se o nome de luz. Pois, ainda que cada um esteja normalmente persuadido de que as ideias que nós temos em nosso pensamento são inteiramente semelhantes aos objetos dos quais elas procedem, não vejo, todavia, nenhuma razão que nos possa assegurar que elas sejam de fato semelhantes àqueles objetos; pelo contrário, venho observando várias experiências que me levam a duvidar dessa suposta semelhança.” (grifos nossos)

Repito, mesmo sendo um texto de juventude, a obra já traz as bases do pensamento que ele desenvolveu ao longo de sua vida, uma proposta verdadeiramente revolucionária na maneira de ver o mundo, rompendo com os fundamentos filosófico-científicos que prevaleceram durante o período medieval e mesmo ainda no alvorecer da idade moderna. Entretanto, vendo o que ocorrera com Galileu Galilei, perseguido por autoridades religiosas por defender que a Terra girava em torno do Sol, Descartes recuou no seu intento e o livro só veio a público após a sua morte.

Por muito tempo, o filósofo francês se dedicou ao estudo de fenômenos da natureza e, principalmente, da matemática, o que resultou na criação da geometria analítica, também conhecida como geometria cartesiana, homenagem a seu criador, Renatus Cartesius, nome latim de Descartes, em trabalho acoplado em trabalho revolucionário para a filosofia e a ciência (terceiro apêndice do Discurso sobre o Método).

Em 1637, empolgado com seus progressos, publicou Discurso sobre o Método, obra na qual desenvolveu uma forma universal de investigação científica, um método que consiste basicamente em quatro regras: ser cético e não tomar nada como certo até que haja evidência de que seja certo (não aceitar nenhuma verdade absoluta é o primeiro passo para conhecer); dividir os problemas em dificuldades menores; ir dos problemas mais simples aos mais complexos, até que não haja mais problemas, e sim evidências, conclusões; enumerar e revisar as conclusões.

A ambição de Descarte era encontrar a verdade e construir o conhecimento em bases sólidas. Para tal, era necessário rejeitar qualquer coisa que levantasse o menor questionamento, o que o levou à dúvida absoluta sobre tudo, exceto sobre a própria dúvida, que, por ter vindo de um questionamento, levou à constatação formuladora do Penso, logo existo, que surge como primeira afirmação considerada verdadeira pelo filósofo.

O método cartesiano influenciou toda a ciência que veio a seguir. A tese de Descartes, de que existe uma única verdade que não pode ser questionada, a nossa existência – daí o cogito, aparece na quarta parte da obra. E é ela uma das mais maltratadas e vilipendiadas pelos pósteros, transformando-se numa espécie de slogan usado para aparentar sapiência e conjunção com tudo o que é valoroso, mesmo que o dito nascido do cogito seja uma formulação filosófica sem pé nem cabeça. Os Penso, logo resisto, Penso, logo não desisto e congêneres são não-cogitos, pois refletem a não-reflexão.

É preciso compreender que existe motivo filosófico para a formulação do cogito cartesiano. Ele não é apenas a junção de palavras que têm força por si. Expressa o esforço intelectual de uma das mentes mais poderosas que já existiu envolvida na tentativa de romper as correntes que atravancavam o conhecimento.

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