Estão te xingando

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.out.21

Tenho percebido que as pessoas se preocupam demasiadamente com o nível de polarização política na vida cotidiana, sobremaneira na internet. Sempre me pego pensando se a convivência virtual deve ser levada tão a sério assim.

É claro que ofensas sempre serão ofensas. Sejam elas realizadas pessoalmente, por telefone, pela internet, na TV, em comícios etc. Porém, mais preocupante que as ofensas é o histrionismo daqueles que se ofendem por tudo.

Tenho a tendência a imaginar que um mundo onde existe o predomínio da libido – toda a sorte de desejos –, conforme já autodenunciado por Agostinho de Hipona, em suas Confissões, não poderia vicejar nada além do mero compadecimento de si mesmo, e dos outros.

Aí você me pergunta: que diabos o desejo, que é uma constante no ser humano, tem a ver com a ofensa ou polarização entre pessoas e grupos na internet?

Meu ponto, meu caro, é o seguinte: em uma sociedade de massas, conforme preconizado por José Ortega y Gasset, onde as pessoas, em média, nunca viveram tão bem como se vive hoje, a tendência geral é que estas mesmas pessoas fiquem cada vez mais escravas com muitas outras limitações inerentes à vida e impostas à vida. Desta feita, terminamos por viver em um contexto social e político no qual impera o hedonismo travestido de bom mocismo. As pessoas vivem como se o mundo devesse algo a elas. E o pior disso tudo é que não se tem a mínima consciência disso, todos veem-se generosos e altruístas. Nada melhor do que o autoengano com relação si mesmo, para que uma vida sem sentido possa germinar, sem serviço e sem doação.

Não seria nada estranho inferir que a busca incessante e contínua pelo prazer, torna as pessoas menos tolerantes e mais extremadas em seus comportamentos, posto que elas tendem a pensar sempre em si mesmas primeiramente – o débito é dos outros, eu só tenho créditos e cobranças para com os outros. Contudo, a despeito destas minhas ponderações, tenho sérias dúvidas se, de fato, nossos contemporâneos são mesmo menos tolerantes que as pessoas de séculos e milênios passados. Por isso, não acho que a polarização deve ser analisada como um problema tão grave.

A dúvida pueril, levantada por mim logo acima, leva-me para o ponto oposto, qual seja, que talvez, levando em consideração a soberba de cada um relação ao mundo, as pessoas estejam é mais suscetíveis a se ofenderem com tudo que se circunvizinha a elas e que tenha a ousadia de não ser do agrado delas. Esta suscetibilidade é prontamente respondida com a marca da intolerância. É claro que não é chamada de melindre, mas travestida de sensibilidade.

Junto a isso é imperioso apontar o agravo de uma espécie de dissonância cognitiva coletiva, de tal forma que as pessoas se preocupam muito mais com a imagem elaborada por elas e pela militância intelectual sobre a realidade, do que com a realidade mesmo, nua e crua. Existe um descompasso entre o mundo como é, e como o sinto. Deste modo, torno-me um indivíduo que vive internamente a dor que não sente, chego a externalizar esta dor, mas não consigo viver adequadamente a dor que deveras sinto, parafraseando o poeta.

Portanto, ainda que a internet, com todas as suas plataformas, seja um “espaço” de barbarismo tribal, não vejo a polarização e a sandice virtual com tão maus olhos. É claro que não estou tentando tirar o direito de as pessoas sentirem-se ofendidas. Pois, todos, em maior ou menor grau, terminam sendo centros magnéticos para receber ofensas. Uns muito mais do que outros. Este talvez seja um dos preços da exposição voluntária das pessoas.

As pessoas tornam suas opiniões públicas. As pessoas se tornam públicas. Tudo isto demanda algum ônus. Pelo simples motivo que o princípio básico de tolerância pressupõe que as pessoas tolerem o que é diferente, não porque aquilo que é diferente é esteticamente mais aceitável. Mas, fundamentalmente, porque as pessoas são diferentes, pensam diferente, vivem e se expressam de formas distintas.

Logo, cara pálida, não queira que as pessoas aceitem tudo o que você é ou tudo o que você diz. Elas simplesmente têm outra visão de mundo. Elas, frequentemente, desgostam de você, às vezes na mesma proporção que você desgosta delas. E nada, absolutamente nada, no mundo mudaria isso. A não ser que além das agências de left-checking fajutas – que brotam por aí, apontando fakenews em tudo o que não seja do gosto dos sensíveis – (comecemos a tentar fundar agências de thinking-checking), com o simples objetivo de controlar o que as pessoas pensam e sentem.

Em um contexto de pessoas tão mimadas, cheias de querências, cheias de verdades, é evidente que a polarização ofende pelo simples fato de desagradar quem se encontra em polos opostos de opinião. Liberdade, como algumas excelências iluminadas pregam, é para aqueles que canhestramente pensam igual, com a seguinte ressalva: quem você pensa que é para pensar diferente?

Alcançamos um nível tal de domesticação da opinião pública, com muitos condenando o embate público pelo simples medo de ter suas malditas opiniões superficiais contrariadas. Não querem correr o risco de se ofender ao ter seus juízos destrinchados em “praça” pública. Desta feita, para os açucarados virtuais, o embate deveria ser realizado apenas segundo regras que não forcem as pessoas a sair do lugar comum. Qualquer perversão da forma do debate ofende aquelas doces almas mais imaculadas e suscetíveis – os sinalizadores de virtude.

Acho até que estou ficando com um temperamento diabético, devido a tanta doce frescura.

Ai de mim se ofender alguém, pois dou o direito aos outros de não ser apenas praguejado, mas enquadrado penalmente dentro das normas do politicamente correto. Normas estas tão politicamente incorretas e intolerantes que defendem o ressentimento contra os que ousam desafiar a tolerância imposta e intolerante.

Desculpem-me se não me faço entender, mas a coisa é assim mesmo.

Neste sentido, por exemplo, para ficar em uma querela atual, ousar questionar a obrigatoriedade de vacinas já transforma o sujeito em um negacionista, em um desinformado insensível, que não pensa nos outros. Ainda que ele não seja contra a vacina. Não, ele não tem a liberdade de ofender, por meio de perguntas tolas e impertinentes, minhas certezas. Eu sei o que é melhor para o mundo. Os insensíveis só propagam o ódio com suas perguntas.

Ahhh, e por falar nisso, devo lembrar que discurso de ódio é tudo aquilo que não agrada a minha sensibilidade, à flor da pele. Ainda que eu destile um “ódio sadio”, contra todos os impostores que têm a ousadia de realizar aquilo que o relativismo da minha bússola moral aponte como odiável. Portanto, o melindre se torna uma força vital, que age na contramão da história, retirando a vitalidade das pessoas, por mais ilógico que isso possa parecer.

A questão é que nossa vida, escravizada pelas telas dos aparelhos eletrônicos portáteis, discursos prontos e palatáveis, curtidas, amizades virtuais e compartilhamentos, jamais será a vida ativa, posto que a preferência nacional, de alto a baixo, de um lado ao outro, é se colocar na posição de vítima dos que pensam diferente. Ainda que eu não faça nada que não seja atacar preventivamente os outros, torno-me o algoz de quem poderá ainda me ofender, por ser diferente. Mas eu ataco apenas porque me ofendo.

Quer saber de uma coisa?

Não enche o saco!!!

 

Por Luiz Roberto, professor de Filosofia

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