Lula, de Maduro a podre

por Sérgio Trindade foi publicado em 01.jun.23

Li e ouvi na mídia e de amigos críticas contundentes porque o presidente Lula recebeu o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Defensores do ex-presidente Jair Bolsonaro correram para acusar o ocorrido como uma ignomínia, esquecendo que Bolsonaro andou confraternizando com o regime saudita, que não é lá exemplo de democracia. Em síntese: não adianta confraternizar com um tirano num dia e acusar o adversário de fazer o mesmo no dia seguinte.

Repito: não adianta confraternizar com um tirano num dia e acusar o adversário de fazer o mesmo no dia seguinte.

Dito isso, adianto: um presidente da república é, num regime presidencialista, chefe de Estado e chefe de governo e, como tal, responsável por defender os interesses do Estado que dirige. Para ele, acima de qualquer interesse estão das razões de Estado.

O conceito de razão de Estado parte do princípio político da impossibilidade de organização humana sem o pulso de um Estado, pois certamente isso levaria ao caos generalizado. Caberia ao Estado atuar no sentido de garantir os seus interesses e de sobreviver da melhor forma possível, justificando as ações empreendidas. Para isso, o Estado age com a justificativa de reprimir os interesses particulares, subordinando-os aos interesses coletivos, isto é, da sociedade ou da nação que o consagra, para a conservação e a segurança dele próprio e, por consequência, da própria sociedade e da nação.

O florentino Nicolau Maquiavel esteve durante toda a sua vida imbuído do propósito definido pelo Estado e por isso toda sua forma política de pensar exprime exatamente o processo de pensar sobre a razão de Estado: “Deve-se compreender que um príncipe (…) não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, frequentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião” e é “nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados”.

Para o italiano Antônio Gramsci, o sujeito coletivo deve perseguir e expressar vontade coletiva que realize reforma intelectual e moral para efetivação de projeto societário que suplante as relações capitalistas, na qual o partido político deve realizar mediação que os sindicatos e organizações sociais não alcançarem, transformando o mundo exterior e as relações gerais e “fortalecendo e desenvolvendo a si mesmo”.

Tomando O Príncipe, de Maquiavel, como inspiração, Gramsci explica o papel de um condottiero como expressão da vontade coletiva, pois, segundo ele, Maquiavel dizia ser o Príncipe “o símbolo do líder, do condottiero ideal”. E finaliza: “Maquiavel trata de como deve ser o Príncipe para conduzir um povo à fundação do novo Estado”, que ele não considera como um líder qualquer, mas como aquele que se volta para o projeto político globalizante, o qual tem como finalidade fundar um novo Estado e superar o já existente. É daí em diante que Gramsci estabelece analogia com o partido político, como dirigente e organizador de uma vontade coletiva, pensando-o como organismo coletivo marcado pela presença das massas, capaz de ação política que supere os interesses econômicos das corporações e tenda a uma perspectiva universal. Diz o intelectual marxista: “(…) o moderno príncipe, o mito-príncipe não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto, só pode ser um organismo; um elemento complexo de sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Este organismo já está dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais”.

Países democráticos têm relações com todos, inclusive com aqueles governados por regimes tirânicos, sem que os seus chefes de Estado e de governo participem de convescotes com déspotas.

A tradição diplomática brasileira (quase) sempre foi a de não se intrometer em assuntos internos dos países e também (quase) sempre foi a de se manter equidistante de conflitos internacionais. Por isso, o Brasil manteve e continua mantendo relações amigáveis mundo afora, razão pela qual é normal que o presidente Lula possa e deva, como chefe de Estado soberano, receber e visitar outros chefes de Estado, sejam eles democratas, ditadores ou monarcas teocráticos, etc.

Lula não deve, porém, cobrir de rapapés ditadores e tampouco estabelecer ou ensiná-los a estabelecer narrativas sobre como transformar ditaduras que destroem ou destruíram os fundamentos do regime democrático em seus países em democracias perseguidas por quem as denunciam e combatem. Mais, Lula não pode subordinar a política externa brasileira aos princípios ideológicos que norteiam o partido que ele fundou, dirigiu e se candidatou aos cargos públicos que ocupou.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda nega a tese não-contratualista da origem familial ou patriarcal do Estado, pois  o Estado não é ampliação do círculo familiar e sim uma descontinuidade e até oposição, coexistem mas em instâncias distintas por complementação, e não por derivação, por pertencerem “a ordens diferentes em essência”.  E conclui: “Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”.

Da mesma forma que a família não é uma extensão do Estado, o partido também não o é.

Cansei de ouvir, corretamente, que o governo de Bolsonaro queria subordinar as políticas de Estado, entre as quais a política externa, à ideologia. A postura de Lula, na recepção a Maduro, seguiu o mesmo rumo e o posicionamento dos presidentes do Uruguai e do Chile demonstraram o erro do mandatário brasileiro.

O Estado brasileiro não é um puxadinho do PT. Os companheiros da família petista não podem e não devem rebaixar o Estado a instrumento da máquina partidária.

O Barão do Rio Branco, Oswaldo Aranha e outros gigantes da diplomacia brasileira agradecem.

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